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Morreu Eunice Muñoz, a referência do teatro português
A atriz Eunice Muñoz morreu esta sexta-feira, no Hospital de Santa Cruz, em Lisboa, aos 93 anos, informou o filho da atriz.
Nascida na Amareleja, no distrito de Beja, em 1928, Eunice Muñoz completou em novembro 80 anos de carreira.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, prestou já "emocionada homenagem" à atriz Eunice Muñoz e agradeceu-lhe "décadas inesquecíveis", em nome de todos os portugueses, lamentando a sua morte com profunda consternação.
"É profundamente consternado que tomo conhecimento da morte de Eunice Muñoz, uma referência nacional, admirada e respeitada por todos os portugueses", declarou o chefe de Estado à agência Lusa.
"Em seu nome, presto-lhe uma emocionada homenagem e agradeço décadas inesquecíveis da vida de todos nós", acrescentou Marcelo Rebelo de Sousa.
"É o meu trabalho"
No final do ensaio de O Ano do Pensamento Mágico, o pungente monólogo de Joan Didion que Eunice Muñoz estreou em novembro de 2010 no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, uma pequena multidão de jornalistas junta-se para falar com aquela que muitos consideram a maior atriz portuguesa. Querem saber como é que se faz para, aos 82 anos, decorar um texto tão extenso, se se emocionou durante os ensaios, a que parte do seu passado vai buscar as lágrimas que derrama em cena. A tudo Eunice responde numa voz pausada: "É o meu trabalho. Tenho de saber o texto, tenho de chorar quando o encenador me diz que devo chorar. Sou uma atriz muito obediente." Como se fosse simples. Como se não fosse preciso talento. De olhos no chão, enroscando as mãos uma na outra, tímida e franzina, Eunice Muñoz não gostava muito de falar do seu trabalho. Era das pessoas mais difíceis de entrevistar por isso mesmo. Se lhe perguntávamos como fazia, ela respondia: "É a minha profissão." E não adiantava muito mais explicações.
O segredo do sucesso? "Tive muita sorte", dizia em todas as entrevistas que deu ao longo da sua carreira. Depois referia os mestres com que aprendeu e, por fim, admitia o mérito de trabalhar, "trabalhar muito" até conseguir alcançar todas as nuances pedidas pela personagem e pelo encenador. E sublinhava: "Sempre me interessou mais o lado artístico do que o material, queria interpretar grandes textos." Nunca conseguiu "dizer que não a um bom texto".
Aos 13 anos no Teatro Nacional
Eunice era "uma atriz por herança", que descende de uma família de três gerações de atores. Os espanhóis Muñoz no teatro, os sicilianos Cardinalli no circo. Alentejana de Amareleja, nasceu a 30 de julho de 1928 e em criança, quando viajava com os pais e o seu teatro desmontável pela província, tinha uma relação de amor-ódio com o teatro. Gostava de representar mas quando chamada ao palco, o que começou a fazer logo aos 5 anos, não conseguia abstrair-se do público que a olhava.
"Inventava até dores de barriga para evitar as caras assustadoras que olhavam para mim", contou em várias entrevistas.
Apesar disso, "alguém reparou" nela e teve oportunidade de, em 1941, se estrear no Teatro Nacional com a peça O Vendaval.
Tinha 13 anos. "Tive uma sorte imensa de ter comigo a primeira companhia do país, com os maiores atores e as maiores atrizes, como a Amélia Rey Colaço, que foi minha mestre muito querida." Decidiu então ir estudar para o Conservatório, que terminou com 18 valores. E, pelo meio, ganhou, com a sua interpretação em Camões, filme de Leitão Barros, o prémio de melhor atriz de cinema atribuído pelo SNI - Secretariado Nacional de Informação.
Aos 18 anos casou-se com o arquiteto Rui Couto e teve uma filha. A carreira ia de vento em popa, mas Eunice estava insatisfeita. Em 1953, tinha 21 anos, suspendeu a atividade. Queria dedicar-se à família. Precisava de pensar na sua vida. Foi trabalhar para uma loja de cortiça, Mr. Cork, no Príncipe Real, onde se tornou uma atração turística - não podendo vê-la em palco, os fãs iam vê-la ao balcão. "A experiência acabou por se tornar insuportável", contou.
Optou por tirar um curso de secretariado. Foi "um percurso que teve de ser feito", recordaria mais tarde, sem qualquer mágoa.
Trabalhou depois numa fábrica de materiais elétricos, no Barreiro, onde acabou por conhecer o segundo marido, com quem teve três filhos. "Um excelente homem, sempre quis que eu desse o melhor de mim e, por isso, sempre preparou tudo à minha volta para eu poder trabalhar e sentir-me liberta. Ele teve uma grande compreensão para com a minha profissão porque era meu admirador mesmo", contou numa entrevista em 2007. Foi ele que a incentivou a voltar ao teatro, o que acabaria por acontecer em 1956, a convite de Vasco Morgado, para interpretar Joana d'Arc, de Anouilh, no Teatro Avenida, e que foi um estrondoso sucesso.
Teatro, cinema, televisão - fez de tudo
Tinha 27 anos. Voltou decidida a dar tudo. Para a história ficam espetáculos como O Milagre de Anne Sullivan (1963), com encenação de Luís de Sttau Monteiro, Fedra (1967), a primeira vez que trabalhou com Carlos Avilez; Mãe Coragem e Seus Filhos (1986), dirigida por João Lourenço; Zerlina (1988), com encenação de João Perry; O Caminho para Meca (1995), Madame (2000) ou Miss Daisy (2006), com encenação de Celso Cleto. No teatro sentia-se em casa, mas também habituámo-nos a vê-la no cinema, a ouvir a sua voz declamar poesia e, desde A Banqueira do Povo (1993), era ainda presença assídua na televisão.
Ganhou prémios, foi homenageada vezes sem conta, tem um teatro em Oeiras com o seu nome. Teve reveses, na vida e na carreira, mas deu sempre a volta por cima sem fazer grandes alaridos. Eunice ganhou o direito a ser simplesmente Eunice.
Pelo menos é assim que o público a conhece, ainda que no teatro, aqueles que com ela trabalhava, a chamassem de "senhora dona Eunice".
"Cada vez é mais difícil. Tenho de lutar mais e tenho de acreditar mais nos textos e nas personagens. Preciso sempre de quem me oriente e de quem me ajude", confessava em 2007. Em 2011, quando andava em digressão com O Ano do Pensamento Mágico e ao mesmo tempo gravava mais uma novela, admitia: "A minha memória é menos minha amiga. De qualquer modo, continua a ir até onde consegue ir com a minha idade." Nos últimos anos, no palco, representava quase sempre com a ajuda de um ponto que lhe dava as deixas no auricular. Mas o talento mantinha-se intacto. "Não me sinto cansada. Talvez porque amo a vida. Amar a vida é fundamental."
"É uma profissão difícil, exigente se a queremos levar a sério", dizia também por essa altura ao DN. Uma profissão difícil para uma mãe de seis filhos (a última com o seu terceiro marido, o escritor António Barahona), com espetáculos pela noite dentro, digressões, uma vida pública. Estudava as falas enquanto fazia o jantar. Habituou-se a ignorar os comentários que não lhe agradavam. E a viver na instabilidade, como todos os atores. Uma profissão "cruel" também. "Porque exige grandes esforços.
Obriga a despir-nos perante essa realidade, que acontece tantas vezes, de que não conseguimos, que não chegámos lá, que nos faltou alguma coisa." No entanto, a "paixão" levava-a a continuar. Tinha atingido um estatuto que lhe permitia só fazer o que gostava. "Quero abandonar os palcos com dignidade", garantia em 2006. "Peço a Deus que me dê discernimento para perceber quando devo sair e não me deixe cair no ridículo."
Uma lady, mesmo sem o título
Diogo Infante, que contracenou pela primeira vez com Eunice quando ela era Dona Branca, nunca escondeu a admiração que, desde então, tinha por aquela que considera "a maior atriz do século XX". Quando foi diretor do Teatro Maria Matos convidou-a para juntos interpretarem A Dúvida, de John Patrick Shanley, com encenação de Ana Luísa Guimarães. Dois anos depois, já diretor do D. Maria II, seria ele o encenador de O Ano do Pensamento Mágico: "Não se trata tanto de dirigi-la, mas sobretudo de acompanhá-la num processo de criação", explicou na altura. Eunice "está constantemente a questionar-se, vive desta inquietação, disse o encenador, elogiando "a sua capacidade para atacar um texto e viver uma história". A cumplicidade entre os dois era tal que a atriz aceitou o convite de Diogo Infante para um novo espetáculo sem sequer saber do que se tratava: "O Diogo diz que já tem uma peça para mim, e eu confio nele", dizia em fevereiro de 2011.
Foi com Diogo Infante que se reconciliou com aquele palco, onde tanto trabalhou, mas não escondia a mágoa por ter sido despedida - "por ser velha" - e por o Teatro Nacional nunca ter honrado os compromissos que assumira com ela. "Fui enganada. Fizeram-nos promessas que nunca foram cumpridas. Se estivéssemos em Inglaterra, o Ruy de Carvalho seria Sir e eu seria Lady. Aqui despediram-nos." Chegaram a planear fazer no Teatro Nacional um Rei Lear especial, em que Eunice seria a protagonista. Mas o sonho não chegou a concretizar-se."
Entre quedas e um tumor na tiroide, a saúde da atriz veio a degradar-se. Em abril de 2015 foi homenageada com o Prémio Sophia Carreira, atribuído pela Academia Portuguesa de Cinema. Subiu ao palco e agradeceu com uma voz sumida. O seu nome foi anunciado para o espetáculo As Árvores Morrem de Pé, com encenação de Filipe La Féria, no Politeama. Mais uma vez Eunice não chegou a subir ao palco.
Nos últimos tempos, acompanhávamo-la no Instagram, onde aparecia geralmente acompanhada da neta Lídia. Com ela continuou a passear e a ir ao teatro, deixando sempre uma palavra de apoio aos colegas atores. Em 2018 participou no filme Olga Drummond, curta-metragem de Diogo Infante.
Não usava maquilhagem, gostava de cozinhar e fazia um caril bastante elogiado. Dormia sempre com uma luz acesa e não gostava de pensar na morte: "Gosto tanto de viver", dizia. Mas não se deixava assustar por ela. Talvez por ser crente, aceitava que "envelhecer faz parte da vida". "Já por diversas vezes morri em cena e é sempre um momento muito difícil. É complicado estabelecer uma linha entre o exagero dramático ou a ligeireza", contava. Hoje voltou a encontrar-se com a morte. Que se feche a cortina.
por Maria João Caetano in Diário de Notícias | 15 de abril de 2022
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias