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Para redescobrir as estações do cinema de Eric Rohmer

Um dos nomes grandes da história moderna do cinema francês está de volta às salas portuguesas: a partir de amanhã, os "Contos das Quatro Estações", de Eric Rohmer, podem ser vistos ou revistos em salas de Lisboa e Porto.

Eric Rohmer durante a rodagem de Conto de Inverno: entre as imagens e as palavras.

O cinema de Eric Rohmer (1920-2010) continua a ter um lugar muito especial nas salas de cinema portuguesas. Depois dos ciclos dedicados aos seus "Contos Morais" e "Comédias e Provérbios", respetivamente em julho e outubro de 2021, chegam agora os "Contos das Quatro Estações", tal como os anteriores em cópias magnificamente restauradas - a partir de amanhã, quinta-feira, para já no cinema Nimas (Lisboa) e no Teatro Campo Alegre (Porto).

De facto, vale a pena recordar que, ao longo das décadas, mesmo antes de 1974, Rohmer sempre foi uma presença regular no mercado português, aliás a par de outros emblemáticos autores da Nova Vaga francesa (Godard, Truffaut, Chabrol, etc.). Dir-se-ia que há uma dimensão intemporal do seu cinema, capaz de ir mobilizando novas gerações de espectadores. Tal poder é tanto mais paradoxal e fascinante quanto os seus filmes, mesmo possuindo a dimensão de elaboradas demonstrações filosóficas (contos morais, precisamente), nunca menosprezam as singularidades dos ambientes em que a ação decorre.

Nesta perspetiva, poderá dizer-se que entre as quase três dezenas de títulos que Rohmer realizou ao longo de meio século - entre La Sonate à Kreutzer (1956) e Os Amores de Astrea e Celadon (2007) - podemos encontrar muitas variações sobre a evolução dos "usos e costumes" na sociedade francesa da segunda metade do século XX. No caso dos "Contos das Quatro Estações", rodados entre 1990 e 1998, isso é tanto mais sensível quanto, mais do que nunca, Rohmer aposta numa interrogação existencial, afinal contaminada por uma desconcertante ironia: como é que os ciclos da natureza pontuam, eventualmente influenciam, as relações humanas?

A luz e as cores

Curiosamente, os quatro títulos não foram rodados pela ordem cronológica das próprias estações. Rohmer começou por Conto da Primavera (1990) e Conto de Inverno (1992), interrompendo o ciclo para filmar A Árvore, o Presidente e a Videoteca (1993) e Os Encontros de Paris (1995); seguiram-se Conto de Verão (1996) e Conto de Outono (1998).

O ziguezague temporal acaba por ser revelador do pensamento inerente a este ciclo de filmes. Não se trata tanto de acompanhar as transfigurações visuais das estações, mas sim de encenar o tempo específico de cada uma delas - apetece dizer: a sua secreta respiração. No limite, poderá dizer-se também que cada uma dessas estações existe como uma personagem (cenográfica e anímica) que contamina as ações de todos os homens e mulheres cujos desejos Rohmer se afadiga a expor e, de algum modo, decompor.

Não admira, assim, que o tratamento da luz e das cores de cada uma das estações seja uma questão fulcral, sustentada, aliás, pela impecável direção fotográfica de Luc Pagès, nos dois primeiros filmes, e Diane Baratier, nos dois últimos. Nada a ver, entenda-se, com qualquer lógica "decorativa", muito menos banalmente "simbólica". O que mais importa é a sensação ambígua dos elementos naturais, pontuando todos os gestos humanos, ao mesmo tempo que só parecem existir através da enigmática precisão desses mesmos gestos.

As personagens de Rohmer surgem sempre divididas entre a estranheza do que sentem, ou dizem sentir, e o desejo insensato de tudo reduzir a um racionalismo sem falhas. Lembremos a naturalidade com que, em Conto de Verão, Melvil Poupaud e Amanda Langlet caminham pela praia, com ele, com a precisão de um teorema matemático, a sistematizar a sua aritmética passional: "Como ninguém me ama, também não amo ninguém."

Ser ou não ser

A dimensão filosófica, entenda-se, não tem nada de "tese" sobre a vida das personagens: é qualquer coisa que faz parte dessa vida. Ironicamente, ou talvez não, a personagem central de Conto da Primavera é mesmo uma professora de filosofia (Anne Teyssèdre) cujos diálogos com uma estudante de música vão virar do avesso todas as certezas que, supostamente, sustentavam a sua vida.

Em 
Conto de Outono, numa ironia clássica, à beira da comédia de costumes - as amigas da jovem viúva (Béatrice Romand) querem "sugerir-lhe" um novo companheiro -, todos parecem equivocar-se através da ilusória transparência dos impulsos amorosos. Enfim, em Conto de Inverno, uma mulher (Charlotte Véry) vive a nostalgia de um amor que passou, como quem transporta um fantasma que os outros homens, afinal, repõem no seu quotidiano...

Num tempo (aqui e agora) em que as relações homens/mulheres surgem frequentemente contaminadas por estereótipos morais, políticos e mediáticos, Rohmer reabre-nos o espírito para a pluralidade das pessoas. Há nele a paciência criativa de quem parece estar "apenas" a olhar para o movimento das cores e das formas de cada estação do ano. Tudo isso acontece através de uma metódica observação dos lugares e um infatigável amor pela infinita riqueza das palavras. No cinema de Rohmer, falar está longe de ser uma mera troca de informações: falar implica o que somos, o que desejamos ser e, por fim, o que não sabemos que somos.


por João Lopes in Diário de Notícias | 30 de março de 2022
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias
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