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Hip-hop, funky, fado e música sem fronteiras
E se, de repente, os produtores de nomes como Beyoncé, Alicia Keys ou Chris Martin trabalhassem com produtores portugueses e artistas como os Calema, Blacci ou Nenny? Foi o que aconteceu no primeiro Klasszik Vynl Song Camp.
Têm ambas 20 anos e as vidas marcadas pelas diásporas em que é pródiga a condição de se ser lusófono - Blacci nasceu no Rio de Janeiro e veio para Portugal aos 6 anos; Nenny, de origem cabo-verdiana, nasceu em Vialonga, às portas de Lisboa, e cedo emigrou com a mãe, primeiro para França e depois para o Luxemburgo, onde ainda passa muito tempo. Mas se as dificuldades económicas ditaram algum desassossego (como Nenny escreveu e cantou no tema que dedicou à coragem da mãe, Dona Maria, "Mudamos de país fomos pra França/Escravas à mesma, mas língua diferente"), a experiência de conhecer outras culturas e modos de viver tornou-as também mais disponíveis para a novidade e para o que é diferente. De mente aberta participaram, com outros artistas e produtores musicais no primeiro Klasszik Vynl Song Camp, que se realizou na semana passada em Sintra, numa parceria das produtoras Klasszik e Live Vynil. "As nossas expectativas foram largamente superadas", dizem-nos ambas, como, aliás, também o dirão António e Fradique Ferreira, os dois irmãos que compõem o duo Calema. O caso não parece ser para menos já que neste Song Camp participaram produtores como Arrow Benjamin (que tem trabalhado com Alicia Keys e Beyoncé, com quem também gravou o dueto Running lose it all), Johnny Coffer (Rita Ora, Emeli Zande, Chris Martin, entre outros), Daecolm (Chris Brown, Headir One, Mario), Sinai (Jonas Blue, Arlissa, Jungleboi, Zayn, Rehab) e artistas como os referidos Calema, Nenny, Blacci, mas também T-Rex, Bárbara Bandeira e Soraia Ramos.
Para Nélson Klasszik (produtor de vários temas destes artistas e de outros como Anselmo Ralph) um dos promotores deste encontro que juntou uma equipa de 20 pessoas, o objetivo foi "criar um intercâmbio de experiências no sentido de gerar uma nova receita musical." Satisfeito com o ambiente criado em estúdio, acredita que não há maneira mais feliz de deixar para trás os largos meses de pandemia: "Estamos tão absorvidos no trabalho em conjunto que é como se os problemas do mundo ficassem lá fora."
A seu lado, está o músico e produtor britânico Arrow Benjamin que nos lembra como conheceu Nélson Klasszik: "Há cerca dum ano, eu tinha acabado de chegar a Portugal e estava num restaurante com a minha mulher, em modo lua-de-mel, mas não pude resistir a ouvir a música que se ouvia noutra mesa, atrás de mim. Eram dois cavalheiros que estavam a ouvir uma performance musical num telefone. Eu não queria pensar em trabalho mas não pude deixar de gostar do que estava a ouvir e fiquei muito curioso. Quando íamos a sair, acabei por voltar atrás e por lhes perguntar que som era aquele. Combinámos encontrar-nos porque, na verdade, estava e continuo a estar muito interessado em fazer discos internacionais e muito disponível para ser inspirado por novas expressões e para investir em novos talentos". Benjamin, que nos revela ter-se mudado para Portugal com a família porque aqui encontrou "ainda um respeito pela vida comunitária que já não existe na Londres onde nasci e cresci", não se sente à vontade para dar lições. No entanto, vai dizendo "aos mais novos que não caiam na tentação de se expor demasiado. Brilhem e partilhem o vosso talento, mas não se deixem mover pelo ego. Tenho o privilégio de trabalhar com algumas das maiores estrelas do mundo da música como Beyoncé, Alicia Keys e sei que a sobrexposição pode ser um fardo muito pesado."
Momentos de partilha como estes são essenciais para os Calema. Fradique Ferreira, o mais velho deste duo de irmãos nascidos em São Tomé e Príncipe mas desde 2008 em Portugal, afirma que "este Song Camp tem-nos permitido, por um lado, compreender que estamos no caminho certo porque nos mostrou que o que estamos a fazer não é muito diferente do que se está a fazer lá fora e, por outro, temos aprendido muito porque estamos em contacto com artistas e produtores muito relevantes a nível internacional." E o que têm aprendido? Segundo António, o mais novo, que "o mercado internacional procura a autenticidade e não a imitação de fórmulas de sucesso, mas já gastas." Esperando que este encontro seja um bom ponto de partida para tempos sem os condicionalismos ditados pela pandemia ("foi horrível atuar para a câmara do computador, sem sentir a energia do público que é essencial na música", dizem), o duo está a preparar um novo disco, a sair no final da Primavera, também uma parceria com o cantor brasileiro Zé Felipe e têm concertos marcados para Canadá, Estados Unidos. Luxemburgo, Bélgica. Guiné-Bissau e Suiça: "Queremos muito fazer isto, levar a nossa música para além das fronteiras da lusofonia. Acreditamos que a música é para ser sentida, mesmo que não se perceba a língua. Às vezes a tentativa de perceber a letra corta o puro prazer de desfrutar da música. Queremos ter gente a saltar e a dançar connosco."
Para as mais novas do grupo, Nenny e Blacci (tão novas que não sabem usar o telefone vintage, de disco, que está na sala em que as entrevistamos) este Song Camp foi um momento para sair fora de pé, sem medos nem preconceitos. "Está a ser muito desafiante", diz-nos a rapper. "Vim disponível para fazer o melhor e encontrei uma abertura muito grande. Se dizemos "Bora fazer uma coisa maluca", respondem-nos então vamos lá. Trabalhamos vários géneros musicais. O meu universo é muito hip-hop e rap e já experimentei aqui thrill, fado, coisas que não imaginávamos sequer que podíamos fazer." Um sentimento partilhado por Blacci: "O que aqui nos foi proporcionado excedeu muito as minhas expectativas porque os participantes são muito talentosos e têm sonoridades tão diferentes que nos tiram da nossa zona de conforto. De repente, estava a misturar música electrónica com funky, ou mesmo a tocar no piano algo à moda de John Legend."
As duas viveram a pandemia de formas diferentes, mas sempre com os olhos postos no futuro.
Para Blacci, foi o momento de tomar grandes decisões: "Eu sempre fiz música mas foi durante a quarentena que tomei a decisão de congelar o curso na Faculdade (estava a estudar Ciência Política e Relações Internacionais) e optar pela música a tempo inteiro.
Compreendi que a vida é demasiado curta para não fazermos o que gostamos mesmo." Para Nenny, profissional desde os 17 anos (em 2019 o seu primeiro tema original, Sushi, teve mais de 14 milhões visualizações no youtube), as coisas foram mais complicadas: "Começou por ser um pouco frustrante porque tinha muitos shows marcados e queria muito interagir com o público, o que é tão saboroso e importante. Mas também pude fazer mais cenas no meu processo criativo e acabei por retirar o mais positivo duma situação má. E agora estou aqui com gente de topo, que trabalha com os artistas que mais me inspiram desde sempre." E faz um grande sorriso: "Valeu a pena esperar."
por Maria João Martins in Diário de Notícias | 6 de fevereiro de 2022
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias