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Arquivo Nacional do Som instala-se em Mafra para salvar 170 mil sons em risco
Um discurso de Salazar, o comunicado do Movimento das Forças Armadas no 25 de Abril, uma gravação de Amália Rodrigues, ou o som de um animal em vias de extinção, um discurso do primeiro-ministro, tudo poderá vir a fazer parte do Depósito Legal que o Arquivo Nacional do Som (ANS) quer preservar para memória futura.
Em entrevista à Renascença, Pedro Félix que preside à estrutura de missão que passou os últimos dois anos a preparar a implementação do ANS revela que os próximos 10 anos serão críticos para garantir que não se perdem documentos sonoros importantes. Esta equipa já tomou sobre sua custódia alguns documentos em risco.
No levantamento que fizeram há 500 itens já identificados, sendo que 170 mil estão em risco e têm de ser preservados urgentemente. A “janela de tempo está a fechar-se” diz Pedro Félix à Renascença. A gravação mais antiga identificada é de 1900.
Está à frente de uma equipa criada em 2019 para estabelecer o Arquivo Nacional do Som. Em que é que consiste esse arquivo?
Isto é uma história muito longa de 85 anos e o objetivo, com a criação da estrutura de missão que é a equipa de instalação do Arquivo Nacional do Som, é precisamente concluir e resolver esta história que se prolonga há já 85 anos. É dotar o país de uma estrutura arquivística para documentos exclusivamente sonoros. Na realidade não existia nenhuma estrutura que acautelasse a preservasão, tratamento e a disponibilização em segurança e de forma legal, dos documentos sonoros.
E o que são documentos sonoros? O que é que configura valor para ser arquivado? Uma gravação como as de Amália Rodrigues, por exemplo?
Aquilo que salta logo à cabeça a quem pensa sobre documentos sonoros são os sons musicais. É verdade, os sons musicais é eventualmente a ponta mais visível deste enorme universo, mas trata-se também desta gravação que nós estamos a fazer, ou seja, todo o evento sonoro que é gravado, que permite ser fixado no tempo e reproduzido em diferido, é passível de ser considerado um evento sonoro. Exemplos concretos podem ser, desde uma gravação em cilindro de cera, para remontar ao suporte físico de gravação mais antigo, até uma entrevista, uma comunicação, uma conferência, um audiolivro, um podcast, para dar exemplos mais recentes. Ou até, menos habituais, as gravações de sons da natureza, sons dos animais que são muito uteis e fundamentais para a investigação em áreas como a ornitologia, ou a biologia, ou até paisagens sonoras. Todo este manancial de documentos faz parte, inscreve-se naquilo que é o nosso objeto.
Isso coloca a tarefa numa dimensão quase infinita.
Não diria um objeto quase infinito, mas virtualmente infinito. O objeto específico e concreto do Arquivo Nacional de Som é precisamente essa dimensão de património português, ou ligado à língua portuguesa.
Gravação mais antiga é de 1900
E qual é o documento sonoro mais antigo que têm na posse do Arquivo?
O arquivo ainda não existe. Neste momento somos uma estrutura de missão que está a preparar e vai entregar para a semana o relatório que servirá de alicerce para a estrutura a criar. Já está assinado um acordo para a instalação física desta estrutura arquivística, mas respondendo à sua pergunta há uma referência a uma sessão de gravação como a mais antiga que data de 1900 feita por um técnico inglês para a Gramophone Company no Porto. É a gravação mais antiga, são canções e peças acompanhadas com pequenos agrupamentos. Sabemos quem as detém e os originais estão em Inglaterra. Há alguns exemplares em Portugal na posse de privados. Também sabemos, em resultado do inquérito que levamos a cabo para conhecer a realidade e fazer o levantamento do património sonoro que há possíveis gravações anteriores, a 1900.
Serão de quando essas gravações mais antigas ainda?
Sabemos que a tecnologia está disponível desde os anos 70 do século XIX, desde 1870 e obviamente que não há uma prática difundida de gravação até à primeira década do século XX, mas a partir daí temos uma história que começa a ser mais ou menos conhecida. Temos depois, o grande impulso de gravação através da Emissora Nacional, fora já do contexto das gravações feitas normalmente por técnicos estrangeiros que vinham a Portugal e que depois vendiam no contexto português, com reportório português de canções que as pessoas conheciam sobretudo do teatro de revista. Depois começa a Emissora Nacional e somos um país que por contingências históricas adotou muito rapidamente modelos e sistemas de gravação. Temos, por isso, um universo de gravações muito significativo. Vão ser tratadas, vamos apoiar as instituições que têm estas estruturas e tentar dar uma resposta definitiva que seja sustentável e eficaz na preservação e divulgação deste património.
Depois de entregarem esse relatório da estrutura de missão ao Ministério da Cultura, passam a outra fase de trabalho do Arquivo Nacional do Som?
Esta estrutura tem algumas implicações tecnológicas e até exigências físicas e por isso entraremos numa segunda fase. Cumpriu-se a primeira grande fase. Sabemos o que existe, como existe e onde está o património sonoro em Portugal. Agora entramos na segunda fase. Já está selecionado o local onde vai ser instalada a estrutura física, de depósitos e laboratórios de digitalização.
E onde irá ficar instalado o Arquivo Nacional do Som?
Será em Mafra. Mas não será dentro da mesma estrutura do Museu Nacional da Música, porque há exigências técnicas que exigem um cuidado patrimonial e tecnológico específico para preservar não só os suportes de som originais, mas também os documentos sonoros uma vez digitalizados.
Que exigências tecnológicas são essas que o Arquivo Nacional do Som necessita?
Convém deixar claro, que há uma situação um pouco trágica no caso dos documentos sonoros. Os suportes de som têm um período de vida. A única forma de garantir a preservação e o acesso futuro aos documentos sonoros é através da digitalização. Quando ponho um vinil num gira-discos, estou a exercer uma fricção e pressão brutal sobre o sulco que pode alterar e degradar a qualidade do som. Isto é um exemplo. Isto para dizer, que todos os suportes de som têm um limite de vida, não só pela degradação física, mas também pela obsolescência tecnológica. Já hoje é difícil encontrar leitores de fita magnética, ou até leitores de cassetes, para já não falar de formatos menos comuns como a Dat ou DTRS. Esses suportes, só há uma forma de garantir o acesso que é a digitalização.
Será esse o trabalho de laboratório que irão fazer no futuro Arquivo em Mafra?
É necessário um depósito físico, laboratórios de tratamento do suporte físico, a leitura para digitalização e depois o repositório digital para dar acesso a esta informação. Dadas estas exigências é necessário criar uma infraestrutura que não é simples, mas também não é uma estação espacial! Ainda vai levar algum tempo o processo de instalação, mas será esta a segunda fase até entrarmos em produção.
Esse trabalho de digitalização e criação do Arquivo Nacional do Som vai ter o apoio do PRR, o Plano de Recuperação e Resiliência?
Precisamente. A verba inscrita no PRR relativa ao Arquivo Nacional do Som será destinada à aquisição de equipamento profissional para o tratamento do material sonoro.
Há sons com interesse arquivístico em risco?
Nestes últimos dois anos e meio tomamos sobre nossa custódia alguns documentos sonoros ponderando o estado em que se encontravam, a ameaça, o risco em que se encontravam. Tomamos sobre nossa custódia provisória. São sobretudo sons em fita magnética. Alguns deles com sinais de degradação, mas que nós contamos vir a tratar para digitalizar e fazer o seu processo de preservação.
E que documentos poderão vir a ser os que vão tratar?
Um dos troncos é o Depósito Legal que agora nos pode parecer uma coisa menos impactante porque estamos a tratar do que está a ser hoje publicado, mas temos de pensar que hoje estamos a garantir a preservação da documentação para daqui a 100 anos. Ao tornarmos efetivo o depósito legal que já está consagrado por lei, mas porque não houve estruturas que conseguissem preservar e dar acesso a esses materiais acabou por ser praticado de uma forma pouco sistemática. Neste momento, estamos em contato com diversos parceiros e agentes deste universo para tentar harmonizar este processo de depósito legal para garantirmos a cobertura deste património. Hoje por exemplo, é fácil encontrar por exemplo, uma gravação da Amália, elas estão acessíveis comercialmente, mas há um conjunto de outro património que à partida nós pensávamos que estava já defendido e protegido, até porque está publicado e existem múltiplas cópias, mas que de facto, por uma série de contingências históricas, acabam por não estar acessíveis, porque estão na posse de privados, nas suas coleções pessoais, e não estão acessíveis ao público em geral.
Quer nos dar exemplos de alguns documentos sonoros não acessíveis?
Vou lhe dar um exemplo que me preocupa de sobremaneira. Há universos de prática cientifica onde a gravação é uma prática regular, uma ferramenta recorrente nos investigadores, no caso da antropologia ou da História oral. A produção de entrevistas é uma prática regular. Esses materiais por exemplo, estão normalmente fora de qualquer proteção institucional. Muitos desses documentos, e é certo que os seus conteúdos podem ser sensíveis e decorrem muitas vezes de relações pessoais, mas acabam por estar guardados em gavetas, caixotes, na casa de muitos dos investigadores, sujeitos a riscos enormes desde roubos, incêndios, degradação física. Portanto, é na tentativa de dar uma resposta a esta realidade que nós temos o objetivo de criar esta estrutura arquivística. O objetivo final é a preservação e o acesso, mas é também fazer esse percurso em diálogo com bibliotecas, museus, investigadores, as fonotecas e as rádios.
"Um discurso do Dr. António de Oliveira Salazar é um documento com valor histórico"
Pode um som como uma declaração do primeiro-ministro que passe hoje na antena da rádio, ter relevância patrimonial?
Por princípio todos os documentos sonoros deverão ser preservados. A gravação de um ensaio de um grupo musical, a atuação de uma banda filarmónica numa festa, a alocução do primeiro-ministro anunciando o fim do confinamento provocado por uma pandemia, uma declaração de um político anunciando uma candidatura a uma qualquer eleição, a gravação de um animal que, entretanto, se extinguiu, a gravação de uma paisagem sonora que, entretanto, foi alterada. Todos esses documentos constituem elementos fundamentais do ponto de vista patrimonial, cultural, mas também do ponto de vista científico. Um discurso do Dr. António de Oliveira Salazar é um documento com valor histórico, mas também como fonte primária de investigação por parte dos historiadores. Às vezes é difícil selecionar, porque pode dar a ideia de que há uns que são mais relevantes. Claro que há uns que tiveram mais impacto na História, afetaram mais, são mais simbólicos, no entanto, a nossa estratégia é procurar a preservação do máximo de documentos possível.
E que universo é esse?
No inquérito ficamos a saber mais ou menos que os documentos que existem em Portugal andarão à volta do meio milhão de itens. Desses, 170 mil serão, ou porque são historicamente importantes, ou porque estão em suportes em degradação, mais frágeis. Esse serão mais urgentemente tratados. O nosso propósito é a preservação desse material num prazo de 10 anos para garantir essa preservação.
"Tive a sorte da minha vida"
O Arquivo Nacional do Som vai trabalhar só com os sons já antigos, ou irá também atuar no presente, recolhendo e preservando sons do dia-a-dia?
Nós vamos trabalhar nos dois sentidos. Porque o passado do futuro, é o presente de hoje. No futuro, aquilo que vamos fazer amanhã, vai ser o passado. As gravações com 100 anos, eram há 100 anos, o documento daquele dia e, portanto, temos uma urgência muito grande de salvaguarda deste património, os tais cerca de 170 mil itens que são históricos e que estão em suportes frágeis e que precisam rapidamente de ser digitalizados. Mas ao mesmo tempo, vamos estar a trabalhar com a comunidade para garantir a preservação do que é hoje produzido. O Depósito Legal ganha um peso de grande importância. Um dos fatores que queremos trazer para o espaço público é uma grande mobilização para que os próprios criadores de documentos sonoros percebam que a sua criação é importante, a sua preservação é fundamental e elas próprias se dirijam ao Arquivo Nacional do Som com o intuito de garantir a preservação desses materiais. Para que daqui a 100 anos, possamos dizer que as práticas sonoras em Portugal foram preservadas as do passado e o presente está representado.
É uma corrida contra o tempo salvar esse património?
Há documentos que apontam que a janela de oportunidade está a fechar-se e estamos a correr contra o tempo.
Para si, pessoalmente é uma missão de uma vida criar este Arquivo e preservar estes documentos?
Eu tive a sorte da minha vida. Este é um processo ao qual tenho dedicado alguma luta desde o fim dos anos 90. O som nunca foi objeto desta preocupação de preservação. E isto é uma coisa que sempre me desafiou muito. Eu e uma série de pessoas andamos a pugnar por esta realidade e tivemos de facto esta sorte. Houve aqui uma mudança de paradigma, uma mudança de atitude por parte da tutela que olhou para esta realidade e reconheceu que não tinha sido dedicado esforço significativo na preservação sustentável. Quando a equipa de estrutura foi criada foi uma mudança radical sobre este património que esteve esquecido, que provocou a sua invisibilidade e que agora chegamos a um ponto de não retorno em que é visível e as pessoas reconhecem a sua importância. É um salto de gigante. O som deixou de ser visto como um acessório, para passar a ser visto como um objeto patrimonial de pleno direito. Já posso morrer descansado!
por Maria João Costa in Renascença | 8 de janeiro de 2021
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Rádio Renascença