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1871. O ano em que Eça de Queirós se tornou um caso sério

As obras literárias e jornalísticas da juventude de Eça e o seu ímpeto de reformar o país, nem que fosse pela sátira, serão os grandes temas do Congresso Eça de Queirós, 150 Anos, que se realiza em Lisboa e Sintra a 14 e 15 de outubro. Mas muito mais estará em cima da mesa, até porque Eça é inesgotável.


Que uma vez se ponha a galhofa ao serviço da justiça!", lê-se na abertura do primeiro número de As Farpas, assinadas, nessa fase inicial, por uma parceria de jovens autores, que muito daria que falar nos anos seguintes, José Maria Eça de Queirós e José Duarte Ramalho Ortigão. O ano era 1871, reinava em Portugal D. Luís I e muito havia a satirizar sobre as contradições da sociedade portuguesa. Aos dois rapazes (Eça, com 26 anos, Ramalho com 35) não lhes doeu as mãos: Doravante, das elites que se pavoneavam no Chiado com mais adereços do que ideias, ao próprio monarca, ninguém estaria a salvo.

Esse ano de 1871, que marca tanto o início da publicação de As Farpas como a realização das Conferências do Casino, estará em foco nos próximos dias 14 e 15, no 2.º congresso internacional "Eça de Queirós, 150 anos", que terá lugar na Biblioteca Nacional de Portugal e no Palácio Valenças, em Sintra (ver texto ao lado). Renato Epifânio, do MIL - Movimento Internacional Lusófono que organiza o evento, explica ao DN que, na origem deste segundo congresso, esteve o muito que ficou por dizer...no primeiro, em 2019: "Organizado sob o mote dos 150 anos da reportagem sobre a abertura do Canal do Suez que Eça fez para o DN, mobilizou muita gente, não só em Portugal, nem sequer só nos países de língua portuguesa, porque a comunidade internacional queirosiana continua a ser muito forte, até mesmo fora das "fronteiras" da lusofonia. Como constatámos que muito ficou por dizer, foi lançada a ideia de se fazer outro em 2020, sobre O Mistério da Estrada de Sintra, cujos 150 anos se assinalaram no ano passado. Como tal não foi possível devido à pandemia, adiámos para este ano, já com novas efemérides: Os 150 anos do início da publicação de As Farpas e da realização das Conferências do Casino." No entanto, salienta Renato Epifânio, "embora parte importante das comunicações se centre nestes temas, também teremos outras, dada a riqueza de leituras que a obra de Eça sempre suscita." Isto sem esquecer O Mistério da Estrada de Sintra, publicada em 1870 como folhetim do DN, também assinada pela muito fértil parceria Eça e Ramalho Ortigão.

O ano de 1871, que é o da derrota da França na Guerra Franco-Prussiana, da Comuna de Paris e da constituição do Império alemão (com o rei da Prússia, Guilherme I, a tornar-se imperador ou kaiser), não será, de facto, uma data qualquer na vida e obra de Eça de Queirós. Numa entrevista ao DN (16/08/2020), o autor do Dicionário de Eça de Queirós e também de uma biografia do escritor (editada pela Almedina) A. Campos Matos falava das consequências literárias da reportagem no Suez: "É aí que se dá a grande viragem de Eça fantasista para Eça observador da realidade. A realidade geográfica, nova, que ele vê avidamente...ele vê o Egito avidamente e já com conhecimento teórico, faz uma revolução na escrita dele." Renato Epifânio não poderia estar mais de acordo: "A reportagem no Suez foi uma prova de fogo para Eça de Queirós como autor. É a partir daí que ele se irá afirmar."

No ano seguinte, viria O Mistério da Estrada de Sintra (ou de Cintra, porque nessa época ainda era com C que se escrevia o nome desta vila tão inspiradora para escritores de tantas paragens), publicado, em formato de folhetim no DN entre 24 de julho e 27 de setembro, não apenas com o propósito de contar uma rocambolesca intriga policial, mas também de agitar a sonolenta sociedade lisboeta. Como Eça recordará no prefácio à 2.ª edição da obra, já em volume: "Há catorze anos, numa noite de Verão no Passeio Público, em frente de duas chávenas de café, penetrados pela tristeza da grande cidade que em torno de nós cabeceava de sono, ao som de um soluçante pot pourri do Dois Foscaris, deliberámos reagir sobre nós mesmos e acordar tudo aquilo a berros, num romance tremendo, buzinado à Baixa das alturas do Diário de Notícias." Como escreve o estudioso da obra de Eça e catedrático da Universidade de Coimbra, Carlos Reis, na nota prefacial à edição crítica de O Mistério da Estrada de Sintra: "Este é um exercício de construção de uma ficção que habilmente disfarça essa sua condição. Ou que joga, de forma deliberada e divertida, com as frágeis fronteiras da ficção e com dispositivos contratuais e discursivos que põem em causa a distinção entre mundo ficcional e mundo real. Era um jovem que andava pelos 25 anos quem comparticipava naquele exercício (...) Acompanhava Eça, na composição do romance, Ramalho Ortigão, mais velho nove anos do que o amigo (e seu antigo professor, como se sabe), no que seria uma primeira colaboração entre ambos (...)".

Agitar a sonolenta sociedade portuguesa

E, em 1871, a dupla voltaria a investir contra as consciências pátrias, desta feita com os fascículos de As Farpas, de que Eça será coautor até ao ano seguinte, mas que Ramalho manterá até 1882 (se excluirmos as chamadas Últimas Farpas, escritas já após a implantação da República e, consequentemente, após a morte de Eça, em 1900). Recorde-se que As Farpas assinadas por Eça seriam reunidas em volume, sob o título Uma Campanha Alegre, em 1890.

Mas 1871 é também o ano em que a sociedade lisboeta é agitada pelos programas de reforma apresentados nas Conferências do Casino e também pela sua proibição por ordem governamental. Realizadas em 1871, no Casino Lisbonense (situado no antigo Largo da Abegoaria, atual Largo Bordalo Pinheiro), por iniciativa do chamado grupo do Cenáculo, de que faziam parte, entre outros, Antero de Quental, Eça de Queirós, Jaime Batalha Reis, Salomão Sáragga, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão Manuel Arriaga ou Guerra Junqueiro, tinham como propósito abrir o debate sobre o que de mais moderno, a nível de pensamento, se vinha fazendo na Europa.

A conferência inaugural, intitulada "O espírito das conferências", foi proferida, a 22 de maio, por Antero de Quental, que afirmou a necessidade de regenerar o país "pela educação da inteligência e pelo fortalecimento da consciência dos indivíduos". Na segunda conferência, o mesmo Antero analisou as "Causas da decadência dos povos peninsulares", que, em sua opinião, eram o catolicismo pós-Concílio de Trento, que impôs o obscurantismo aos espíritos, a centralização política das monarquias absolutas, que determinou o aniquilamento das liberdades locais e individuais, e a política expansionista ultramarina, que impedira o desenvolvimento da pequena burguesia em benefício de uma aristocracia tão ociosa como perdulária. A Eça, que proferiria a quarta conferência (após a de Augusto Soromenho), caberia falar sobre "A Nova Literatura (O Realismo como nova expressão da Arte)", lançando os fundamentos da sua conceção de Realismo, influenciada por Flaubert, Proudhon e Taine. Contra todas as expectativas, a quinta conferência, a cargo de Adolfo Coelho (que falaria sobre a necessidade da reforma educativa, nomeadamente através da separação entre Estado e Igreja), seria a última. Quando já se preparava a sexta conferência, o governo, alegando que "as preleções expõem e procuram sustentar doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições do Estado", ordenou o seu encerramento. Não sem oposição, porém: Choveram cartas nos jornais e foram publicados opúsculos de polémica entre os quais a famosa carta aberta de Antero ao Marquês de Ávila e Bolama (o ministro responsável pela proibição), intitulada "Eu sou socialista", na qual protestava contra o que ele considerava ser o conservadorismo e a hipocrisia do poder político.

Os 150 anos das conferências do Casino estarão ainda em destaque num ciclo de palestras online, realizadas sempre às 16.30 de Lisboa. Serão elas: "Antropologia da Nação" (Gustavo Rubim); "Outros Realismos: Eça sem Machado" (Vincenzo Ansillo), a 14 de outubro; "O Mandarim et t"impertinent tyrannie de la realité" (Matteo Rei); "Augusto Soromenho: Provável Arabista" (Fabrizio Boscaglia), a 28 de outubro; "Fundar Impérios por excesso de História" (Vincenzo Russo); "O Pensamento de Oliveira Martins na obra de Gilberto Freyre" (Alice Girotto), a 4 de novembro; "Adolfo Coelho, entre a Filologia e a Educação Linguística" (Vanessa Castagna) a 11 de novembro.

Criado oficialmente em 2010, sob inspiração do conceito de lusofonia de Agostinho da Silva, o MIL - Movimento Internacional Lusófono, que promove este congresso, vai aproveitar a ocasião para lançar o 28.º número da revista Nova Águia, cuja publicação se iniciou em 2008. O principal destaque deste número vai para um ensaio sobre Antero de Quental e Guerra Junqueiro, da autoria de António Braz Teixeira, importante nome da Filosofia contemporânea, de que a MIL publicou recentemente os títulos: A Vida Imaginada: Textos sobre Teatro e Literatura; Interrogação e Discurso: estudos sobre filosofia luso-brasileira e ibérica; A saudade na poesia lusófona africana e outros estudos sobre a saudade. Há ainda que referir a evocação de dois dos nomes grandes da Filosofia Brasileira no último meio século - Miguel Reale e António Paim -, este falecido a 30 de abril deste ano, uma entrevista ao escritor João de Melo e a um conjunto de textos inéditos saídos do 6.º Congresso da Cidadania também promovido pelo MIL.

Este número da revista dá ainda relevo à publicação das obras escolhidas de Manuel Ferreira Patrício, com edição de Renato Epifânio e Samuel Dimas. Falecido este ano, Ferreira Patrício teve uma vida e obra dedicada à Pedagogia: antigo reitor da Universidade de Évora, era licenciado em Filosofia e doutorado em Ciências da Educação, na especialidade Filosofia da Educação. Foi um colaborador assíduo da Imprensa Nacional Casa da Moeda, sendo durante vários anos membro do Conselho Editorial da editora pública. É também o autor do livro Messianismo de Teixeira de Pascoaes e a Educação dos Portugueses (1996). Concebido como um movimento de cidadãos pela Lusofonia, o MIL distinguiu recentemente, pela sua obra e pensamento, o antigo secretário executivo da Comunidade de Países de Língu a Portuguesa (CPLP), embaixador Francisco Ribeiro Telles.


por Maria João Martins in Diário de Notícias | 10 de outubro de 2021
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

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