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Tintin no país do fado
Tintin, Milou e Haddock são algumas das personagens com que o visitante da Gulbenkian se poderá cruzar a partir desta sexta-feira. A exposição "Hergé" trá-los na bagagem, à mistura com muitas surpresas (algumas bem controversas) sobre a vida e obra do ilustrador belga.
Com mil milhões de demónios!", exclamaria o capitão Haddock se, por um destes dias, passasse à porta da Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Isto porque a partir de sexta-feira, 1 de outubro, e até 10 de janeiro, o lugar onde estamos habituados a admirar grandes nomes da arte mundial dará a ver o trabalho do ilustrador e desenhador de banda desenhada Georges Prosper Rémi, vulgo Hergé, também conhecido como "o pai de Tintin".
Organizada em colaboração com o Museu Hergé da cidade belga de Louvain-la-Neuve, "Hergé" (que já esteve patente no Grand Palais, em Paris, no outono de 2016) traz ao conhecimento do público português uma importante seleção de materiais (pranchas originais, pinturas, fotografias e documentos de arquivo) e obras criadas pelo autor. Ao longo de nove núcleos, é-nos proporcionada uma visão poliédrica do trabalho de Hergé, mas também de toda a complexidade da sua biografia e dos tempos conturbados em que viveu (1907-1983). Tudo razões para que João Paulo Cotrim, editor da Abysmo e antigo diretor da Bedeteca de Lisboa, recomende uma visita atenta à exposição. "Faltar-lhe-á talvez um núcleo sobre a ligação de Tintin a Portugal, que é mais importante do que as pessoas pensam", salienta.
Hergé e Portugal
Recuemos a esses anos marcados pela estética modernista, em que novas artes, como o Cinema e a Banda Desenhada, serviam de laboratório à procura de linguagens mais adequadas ao mundo saído da Primeira Guerra Mundial. O Portugal de Almada Negreiros e Pessoa tornar-se-ia decisivo para a carreira internacional do jovem repórter de poupa à prova de hecatombes, sendo o primeiro país não francófono a publicar as suas aventuras. A estreia mundial dera-se a 10 de janeiro de 1929, no suplemento infantil Le Petit Vingtième, do jornal belga Le Vingtième Siécle, e Portugal não tardaria a publicar essas primeiras tiras no jornal infantil O Papagaio, graças aos esforços do escritor e grande divulgador de literatura para crianças e jovens, Adolfo Simões Muller (1909-1989). João Paulo Cotrim nota, aliás, que essa ligação seria continuada no tempo já que, em plena Segunda Guerra Mundial, Muller, preocupado com a situação de Hergé e sua família na Bélgica ocupada pelos alemães, lhe há-de enviar uma considerável quantidade de latas de conserva. "Seria interessante saber onde pára a correspondência trocada entre ambos, sobretudo nesse período tão difícil", sugere.
Esses eram ainda os tempos das primeiras aventuras de Tintin e seu cão Milou no país dos sovietes (álbum de 1930) ou no Congo (um ano mais tarde), justamente aquelas que, nos últimos anos, têm vindo a ser mais questionadas pelo seu teor ideológico. Portugal publicou-as ("dando-lhes até cor, ainda de forma incipiente", diz João Paulo Cotrim), como publicaria outras, já do pós-Segunda Guerra Mundial, muito mais sofisticadas e maduras. Tintin seria, aliás, o título de uma popular revista de banda desenhada portuguesa: publicada entre 1968 e 1982, destinava-se, como se lia no cabeçalho a "jovens dos 7 aos 77 anos", teve como diretores Dinis Machado e Vasco Granja e, para além de publicar aventuras do herói que lhe dava o título, incluía histórias de Spirou, Michel Vaillant ou Hugo Pratt.
O impacto nas artes e na cultura
Sempre metidos em peripécias nos lugares mais inesperados, do Congo colonial à China, passando pela América e até mesmo pela Lua, Tintin, Milou, o capitão Haddock, o professor Tournesol, a cantora Castafiore ou os inefáveis detetives Dupond e Dupont constituem uma galeria de personagens com forte impacto no imaginário de várias gerações de leitores. Mais do que isso, tem sido objeto de tratamento e estudo por parte de artistas plásticos ou até de ensaistas como Roland Barthes. Mais recentemente, em 2006, o escritor britânico Tom McCarthy dedicou-lhe o livro Tintin and the Secret of Literature, em que, partindo da leitura de Barthes, relaciona a personagem com a biografia de Hergé e com vários clássicos do cânone literário europeu, nomeadamente na abordagem de temas de sempre como a luta entre o bem e o mal, a amizade e a traição. Mas se estas leituras, pela sua natureza, ficaram encerradas no debate académico, o mesmo não aconteceu com a biografia assinada pelo jornalista e escritor Pierre Assouline (autor de biografias de personagens muito marcantes da vida cultural francesa como o editor Gaston Gallimard ou o fotógrafo Cartier-Bresson) . Embora não se considerasse propriamente um tintinófilo (termo aplicados aos apaixonados pela personagem, que não são poucos), Assouline avançou para os arquivos mas cedo compreendeu que ia causar desgostos a esse público fiel.
Na verdade, o que o biógrafo nos mostra, nesse livro de 1996, é um Hergé politicamente muito incorreto, leia-se mesmo reacionário e preconceituoso. Numa entrevista concedida na época, o autor admitiria: "Há facetas difíceis de aceitar: o seu antissemitismo, o seu confesso desamor pelas crianças, o seu passado de colaborador com os nazis. Por volta de 1948, 1950, estava tão mal visto na Bélgica e França, que ofereceu os seus serviços a Walt Disney, que os recusou. Depois, chegou a encarar a ideia de se refugiar na Argentina, para onde partiam muitos nazis a contas com a justiça na Europa..."
Depois disso, as releituras de Hergé e do seu Tintin (sobretudo em tempos de cancel culture) têm-se revelado difíceis. Em foco estão sobretudo as primeiras aventuras, publicadas na década de 1930. Em 2007, a Biblioteca Pública de Brooklyn, Nova Iorque, retirou das estantes a segunda aventura de Tintin (Tintin no Congo), tornando-se a sua consulta sujeita a pedido expresso à direção, com justificação da escolha. No mesmo ano, um cidadão congolês interpôs em Bruxelas um processo com vista à interdição da venda da obra, alegando tratar-se de "uma justificação da colonização e da supremacia branca", mas em 2012 o tribunal acabou por rejeitar tal pretensão. Na Suécia e na Grã-Bretanha processos com o mesmo objetivo conheceriam idêntico desfecho, mas a incomodidade não desapareceu por decreto. O livro é recorrentemente encarado como um veículo do colonialismo europeu, com visões estereotipadas e ofensivas das populações africanas. De resto, acusações de reacionarismo e preconceito são frequentemente extensivas ao primeiro álbum, Tintin no País dos Sovietes, em que, aos olhos de muitos, Hergé não se dá ao trabalho de esconder o mais primário anticomunismo.
João Paulo Cotrim compreende a perturbação, não a menoriza, mas não considera que tal seja razão para "cancelar" Hergé ou Tintin: "Não há que esconder os aspetos polémicos. Eu percebo a incomodidade, mas não me parece que a censura seja aceitável. Vamos lá discutir isto e pôr em contexto". Hergé, frisa, não é sempre o mesmo, evoluiu, como homem da sua época: " Na década de 1930, como tantos europeus ocidentais, ele era desconfiado face à revolução bolchevique e é racista num certo sentido, mesmo colonialista, como tantos dos seus concidadãos. Mas, ao longo do tempo, isto foi sendo apurado e limpo da obra. Se virmos Tintin na América com atenção encontramos uma denúncia do capitalismo e se lermos Tintin no Tibete vemos um elogio extraordinário à amizade. Se tivermos de fazer um equilíbrio, o que vale a pena ganha de longe ao que é mais lamentável." Quando fala em méritos, Cotrim não hesita em falar de qualidade literária e gráfica, já que Hergé, é sabido, era um perfeccionista: "O escritor Mário de Carvalho costuma dizer, com muita graça e talvez com algum exagero, que foi com o Tintim que aprendeu tudo sobre a construção da narrativa. E, na verdade, todas as personagens são muito bem desenhadas, completamente tridimensionais, com mecanismos narrativos muito bem equilibrados."
Consciente de que as leituras contemporâneas de Tintin não são uma brincadeira de crianças, a Gulbenkian preparou uma série de iniciativas paralelas sobre a receção, também política e ideológica de Tintin, em Portugal e não só. Entre elas, um ciclo de conferências intitulado "Hergé no Mundo Contemporâneo". A primeira, que se realizará a 12 de novembro, tratará o tema (talvez inesperado para alguns) "Hergé e o Portugal do Estado Novo".
por Maria João Martins in Diário de Notícias | 29 de setembro de 2021
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias