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Cândido Ferreira (1950-2021)
O ator, que fundou a companhia de teatro O Bando, morreu esta quarta-feira em Lisboa.
Leia aqui a emotiva mensagem de João Brites:
Cândido Ferreira, camarada actor, resistente amigo. Agora que a tua morte fulminante nos deixa um vazio demasiado silencioso, queremos dizer a todos os que te conhecem e nos estimam, que continuamos o teu desígnio, comemorando a vida e as belas batalhas que travámos juntos no Teatro O Bando. Nas mais recentes reuniões da cooperativa foi bom ver como continuavas a ser tão certeiro nas tuas intervenções, sem nunca perderes a ternura desse teu olhar.
Estás na matriz deste projecto que perdura no modo de se organizar e de fazer o que for preciso para estar do mesmo lado da barricada. Na década de setenta saías dos nossos ensaios para ires mobilizar jovens desempregados em torno do grupo de teatro Os Patolas em Marvila. Depois disso ainda andavas, pela noite dentro, a colar cartazes contra desigualdades que a jovem democracia não resolvia.
Dois meses depois da fundação do grupo estreávamos o PASTOR (1974) onde tu contavas a saga de uma profissão que não sabia ler nem escrever e que sabia apenas contar as ovelhas que não lhe pertenciam. Anos depois, muitas das pessoas que assistiam ao espectáculo OMZIKZAF (1978) não descobriam a malandrice de termos escrito ao contrário a palavra fascista.
A tua corrosiva ironia estava bem patente naquela personagem de OS CÁGADOS (1985) de Almada Negreiros, onde representavas “um senhor muito senhor da sua vontade”. Também tu próprio eras saudavelmente teimoso e, a pouco e pouco, fomos deixando de saber se não seriam as personagens que estavam a construir a pessoa do ator.
Foste provocador “taberneiro” no CARAS OU COROAS (1981). No AFONSO HENRIQUES (1982) divertias-te e divertias-nos com as insinuantes diabruras do “cónego Martinho”. Trabalhaste como actor a generosidade compulsiva de S. CRISTÓVÃO (1985) porque no dia-a-dia também eras um pouco assim. O vulnerável navegante dos TRÁGICOS E MARÍTIMOS (1984) já tinha sido compelido a ser um afoito emigrante.
Ainda ouvimos a tua voz sonante na rouquidão do “cão”, nesse antológico trabalho de actor quando fazias de “Nero” no conto OS BICHOS (1990) de Miguel Torga. Persiste dentro do nosso ouvido aquela inconfundível acentuação tónica na primeira sílaba da palavra “pele” a que recorrias para fazeres a personagem de A COMUNIDADE (1988) de Luiz Pacheco. Por gostares dos insubmissos e dos irreverentes foste dar aos PASSOS EM VOLTA (1990) representando o texto de Herberto Hélder. Agora, somos nós que roubamos as palavras ao poeta para enaltecer o que tu foste enquanto actor:
“O actor acende a boca. Depois os cabelos. / Finge as suas caras nas poças interiores. / O actor põe e tira a cabeça / de búfalo. / De veado. / De rinoceronte. / Põe flores nos cornos. / Ninguém ama tão desalmadamente / como o actor.”
Desculpa confundirmos o que tu representas como figura pública e o que tu és como nosso querido amigo. Digamos o que dissermos é a palavra amor que permanece quando pensamos no que tu foste e no que permanece em nós.
João Brites
Teatro O Bando