"É de Cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos que vos quero falar"

Notícias

As audio-coreografias para olhos fechados de Sara Anjo

Ilhas – Uma Constelação começou por estrear-se no festival Lisboa Soa. Agora que devia ser revisitada ao vivo pela coreógrafa Sara Anjo e pelo sonoplasta Artur Pispalhas, a ausência de público levou a uma maior atenção à palavra.

Foto de Vera Marmelo

Por estes dias, Sara Anjo e Artur Pispalhas deveriam estar a apresentar Ilhas – Uma Constelação no espaço Penhasco (grafado PENHA SCO), em Lisboa. Mas, como todos os outros planos artísticos que passavam pela partilha presencial com o público, as intenções foram-se pela ravina abaixo. Riscadas as apresentações, sobrou a ideia de que a performance criada originalmente para o festival Lisboa Soa (e agora recuperada) pudesse, ao invés de ser liminarmente cancelada, encontrar uma outra vida sob a forma de “audio-coreografias”. Como assim? Descrições de danças atiradas para os ouvidos de quem escuta? Nem por isso. Pense-se antes em sons e palavras que trazem consigo movimento e que, nalguns momentos, se põem a bailar na nossa imaginação.

Sara Anjo nasceu na Madeira. “É essa a minha matriz – vivi lá toda minha infância, nessa altura em que se criam raízes e se formam o carácter e a personalidade”, conta ao PÚBLICO. Acabou por sair da ilha e por cimentar o seu percurso noutras paragens, mas o imaginário insular ficou-lhe impregnado no corpo. “Ilha é um corpo rodeado de mar”, ouvimo-la dizer no primeiro dos textos por que nos leva nas audio-coreografias partilhadas na plataforma Soundcloud. “Este trabalho começa muito pela minha vontade de reflectir acerca desse território. Porque sendo um território que conheço melhor e que está mais próximo de mim”, diz, “há questões que se proporcionam pensar através das ilhas”. E uma dessas questões cruciais, espalhada pelos três áudios de Ilhas – Uma Constelação, é a “ideia de viagem, de travessia, de caminho”.

Esta deriva infiltra-se repetidas vezes nas palavras com que Sara Anjo habita as gravações, ao mesmo tempo que Artur Pispalhas lhes segue o rasto e dialoga com os textos através da construção de paisagens sonoras. E à medida que avançamos, por entre sons borbulhantes, e curtas e cândidas narrativas de pendor poético, encontramos também o conceito de utopia tantas vezes “agrafado” à ideia de ilha. Não apenas a utopia decorrente da ilha deserta e paradisíaca, em que se imagina a reinvenção dos princípios da vida em comunidade e se namora com a idílica tentação do recomeço virgem. “Infelizmente”, lembra Sara Anjo, “também se concretizaram grandes distopias nas ilhas – sabemos que as prisões mais violentas muitas vezes são ou foram em lugares mais remotos”. Tudo isso se cruza, na voz e nos sons que Sara Anjo e Artur Pispalhas vão colocando no caminho dos nossos ouvidos, ao ritmo de um lento embalo em águas pouco agitadas.

Ilhas – Uma Constelação é, no fundo, a continuação de um trabalho que os dois vêm desenvolvendo em conjunto desde 2016. Artur tem sido o responsável pela sonoplastia e pelo desenho de som das coreografias de Sara para o palco, mas até agora pareciam ter escapado sempre a um universo que parecia anunciado desde o início. Foi também a proposta do Lisboa Soa, para prepararem uma peça no espaço da Mãe d’Água, que “ajudou a focar o tema numa relação muito directa e muito presente com a água”. Depois, resume Sara, foi só deixar que o “sentido da viagem através da água” se impusesse.

A impossibilidade de apresentação da peça na sua forma original levou a que Sara e Artur pegassem nas gravações realizadas durante o Lisboa Soa e em todo o material de pesquisa, cruzando captações das performances que aconteceram no festival e as gravações de campo que estimularam esse processo criativo. Ao prescindirem forçosamente do lado visual e da presença do corpo, escolheram dar um peso maior à palavra. “Já tínhamos pensado que houvesse texto na Mãe d’Água”, explica o sonoplasta, “mas por questões acústicas e de reverberação do espaço acabámos por desistir da ideia, uma vez que se tornava difícil de compreender”. Agora, diz, “a palavra ganhou um espaço mais central”. E apesar de alguns sons serem “bastante concretos”, esta “é uma caminhada relativamente abstracta, em que a palavra vem como uma guia e o som adapta-se e cria espaços para que ela apareça”. No processo, Ilhas – Uma Constelação tornou-se um objecto diferente. Na Mãe d’Água, compara Artur, “a caminhada era algo que fazíamos de olhos abertos – via-se a performance, a Sara dançava”; agora, “é uma caminhada mais para ser feita de olhos fechados”.

Para Sara Anjo, o desafio é conseguir que som e palavra possam permitir ao público submergir neste mundo e “procurar que o corpo enquanto escuta encontre também sensações e um certo estado de contemplação”. E, aos poucos, numa possível perspectiva simbiótica, deixarmo-nos levar pela imagem de pensarmos os corpos que temos em relação com os outros corpos. Como ilhas, claro, territórios de utopias e distopias, mas também superando a ideia de isolamento, atentos a tudo o que os rodeia.

 


por Gonçalo Frota in Público | 20 de fevereiro de 2021
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público 

Agenda
Ver mais eventos

Passatempos

Passatempo

Ganhe convites para a antestreia do filme "Memória"

Em parceria com a Films4You, oferecemos convites duplos para a antestreia do drama emocional protagonizado por Jessica Chastain, "MEMÓRIA", sobre uma assistente social cuja vida muda completamente após um reencontro inesperado com um antigo colega do secundário, revelando segredos do passado e novos caminhos para o futuro.

Visitas
93,788,242