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Um «Depoimento» esquecido e enterrado
«Esta é a madrugada que eu esperava | O dia inicial inteiro e limpo | em que emergimos da noite e do silêncio | e vivos habitamos a substância do tempo» são versos para lá de famosos e repetidos - e com razão - de Sophia de Mello Breyner Andresen, mas embora a sua oposição ao anterior regime seja hoje bastante conhecida, a escritora marcou numa outra ocasião de grande introspecção moral - e política - uma igualmente vincada posição ética de que, todavia, todos os ensaios biográficos, estudos literários, entrevistas e artigos avulsos se esqueceram, ou quiseram fazer esquecido.
A 20 de Novembro de 1956, conjuntamente com o poeta e grande amigo Ruy Cinatti Vaz Monteiro Gomes e o advogado e jornalista Francisco de Sousa Tavares, com quem se casara havia dez anos certos – todos católicos e monárquicos ligados ao Centro Nacional de Cultura -, Sophia assinou na primeira página do Diário Popular um veemente «Depoimento» em repúdio frontal à violência soviética contra a revolta libertária húngara, esmagada duas semanas antes, e em resposta ao apelo internacional dos intelectuais daquele país.
Intervenções russas desse calibre e pinta abriram conhecidas rachas e dissensões nas fileiras «humanistas» europeias, como não podia deixar de ser, mas dificilmente se compreende que o documento que adiante se divulga – um caso sem tradição na cultura portuguesa -, não tenha sido registado ou comentado na biografia de Isabel Nery (Esfera dos Livros, 2019), e inútil se torna folhear as actas do colóquio internacional promovido pelo Centro Nacional de Cultura em 2011, ou números monográficos de revistas literárias. Tão-pouco Peter Stilwell o menciona no seu magistral A Condição Humana em Ruy Cinatti (Presença, 1995) ou dele vi sinais na recolha de textos políticos de Francisco de Sousa Tavares organizada por seu filho Miguel (Escritos Políticos, 2 vols., Figueirinhas, 1996). Maria Carneiro de Sousa também não o notou no livro subintitulado Obra de 1944-1962, precursora do Concílio Vaticano II no contexto político e eclesial português (2004), nem mesmo quando avalia os seus «pontos de contacto» com o poeta de O Livro do Nómada Meu Amigo, saído em 1958 pela Guimarães Editora, com um poema-prefácio de Sophia de Mello Breyner.
No seu livro Um Combate Desigual. Ensaios de Sociologia Portuguesa, impresso em edição de autor em 1960, quatro anos depois deste «Depoimento», Francisco de Sousa Tavares escreveu: «O totalitarismo fascista e a tirania marxista foram no mundo moderno as grandes explosões políticas duma atitude filosófica verdadeiramente anticristã. […] A democracia é o regime que exige dos homens maior nível moral; que requere educação, autodomínio, respeito íntimo e profundo pela dignidade dos outros. Sem o absoluto duma lei moral e dum direito natural, a democracia arrastar-se-á prostituída pelas ruas, à mercê da massa e do tirano. A disciplina democrática é de dentro para fora e não de fora para dentro. Tem de existir na consciência dos homens para que possa viver na consciência da cidade» (pp. 186-87).
Por omissão, cumplicidade ou indiferença – que persistem -, o libelo de Sophia, Cinatti e Sousa Tavares não terá tido reverberações na sociedade portuguesa, enfeixada também ela entre duas dominações. O antifascismo tornou-se narrativa única, e não precisamos de ler Júlio Pomar. O Pintor no Tempo de Irene Flunser Pimentel (2018) para o perceber… Mas talvez agora, relendo este depoimento, ganhem outra tonalidade os versos do poema «Exílio», que em 1962 Sophia incluiu no seu Livro Sexto, e clamam assim: «Quando a pátria que temos não a temos | Perdida por silêncio e por renúncia | Até a voz do mar se torna exílio | E a luz que nos rodeia é como grades»…
Vasco Rosa
1956. Crepúsculo sangrento de um ano que a saudade não conserva. Com o cair das folhas neste Outono frio e inundado de sol, a horrível tragédia de Tróia e de Cartago, o grito lancinante das cidades mortas, de novo se desdobra e clama na terra martirizada da Europa antiga.
De novo o Mundo assistiu, cobarde e quieto, ao massacre do pudonor gentil de uma raça, ao estrangulamento frio e fundo do humano grito de liberdade ou morte. Encharcada no sangue dos seus filhos, sagrada pelo martírio incrível de uma geração, a terra plana da Hungria avulta aos nossos olhos como a viva imagem da tortura moral e física do homem escravizado pelo homem, massacrado pela força, atingido na sua dignidade, na sua honra e no seu sentido de justiça.
O Zero e o Infinito. O esmigalhamento da personalidade e do sonho humano de uma cidade em que os homens sejam livres e seguros, em que a lei seja a trincheira que defende todos e cada um do monstro abstracto e sem alma em que pode degenerar o poder dum Estado político.
O grande, o inanarrável drama que sintetiza e explica para a História o século XX – o drama do poder totalitário do Estado – encheu mais um capítulo de horror na História moderna; mais uma vez o diálogo mortal do direito e da força subiu à tona do destino humano, iluminado pelos clarões de uma cidade agónica e de um povo em desespero. O silêncio pesado e brutal amortalhou os últimos clamores da festa magnífica em que um povo inteiro celebrou, embriagado, o direito de ser livre, o direito de ser senhor da sua vida, do seu destino e… do seu governo.
A Hungria morreu. Mas o sangue derramado em jorro sobre as pedras antiquíssimas de Buda e de Pest, o sangue que tingiu a água ocidental e europeia do Danúbio não pode ser perdido. Como semente de heroísmo, como módulo da determinada e estóica resistência individual à tirania da força, cimenta em cada um de nós, ocidentais e europeus definitivos, a profunda vontade de estruturar a nossa liberdade cívica e vital e a nossa cristã dignidade de homens, em termos claros e iniludíveis, em termos de repugnância instintiva a toda a forma de prepotência ou de arbítrio contra a lei.
Baudelaire dizia que o poeta não é de nenhum partido, pois se o fosse seria um simples mortal.
Independentemente de qualquer partido, as terríveis violências praticadas na Hungria põem de luto a inteligência e a alma de todos aqueles que esperavam que o seu tempo não fosse um tempo de suplícios, de traição e de mentira.
Põem de luto a alma de todos aqueles que, com a sua inteligência ou a sua arte, tentaram encontrar a verdade de um universo puro e de uma ordem real.
E, na fúria anormal e desumana com que a liberdade da Hungria é esmagada, o regime russo mostrou que não trazia em si nenhum ideal, mas unicamente política. Unicamente um partido.
E ninguém pode suportar o horror de um mundo onde um homem não é um homem mas unicamente um número que, quando convém, pode ser suprimido.
A violência e o abuso que estão sendo praticados na Hungria são o resultado natural de uma maneira de ser onde, sem respeito pela individualidade, pela solidão e pela diginidade humanas, os homens chamam uns aos outros camarada. A palavra camarada, palavra que exprime promiscuidade e desidentificação, é uma palavra que tende a destruir aquele dado essencial de toda a poesia de que cada homem é em si um valor único e insubstituível. É uma palavra que serve de máscara e de incentivo àquela antiga perversão do instinto de espécie que faz com que o homem seja o lobo do homem.
Nenhuma inteligência objectiva pode aceitar uma justificação para a repressão da revolução húngara. Nenhum poeta pode deixar de chorar sobre a esperança e a claridade destruídas.
Quisemos prestar esta homenagem à grandeza e ao heroísmo da mocidade cobardemente assassinada. Nela ressurgiu o sentido esquecido da palavra homem. E não pudemos calar o eco solitário e impotente que em nós levantou o apelo angustiante dos intelectuais húngaros; temos horror de pertencer a um Mundo em que esse grito se perdeu sem que a indignação levantasse as almas e os homens se erguessem para a morte, porque a vida fica sem destino e sem leveza quando já nada se defende nem nada se combate. Ao grito dos nossos irmãos perdidos e abandonados, a todos os heróis mortos por nós, pela nossa liberdade e pelo nosso destino, nada temos para dar além deste testemunho de admiração, de piedade e de tristeza imensa.
Não podemos aceitar o massacre de uma cidade.
Não podemos aceitar nenhuma confusão de planos entre o massacre da Hungria e a luta do Suez. Porque, nesta, a inteligência, a sensibilidade e o conhecimento histórico se podem dividir em possibilidade dialéctica. Sobre o cadáver de uma cidade martirizada nenhuma discussão é possível. E, sobretudo, não aceitamos essa confusão de planos quando ela é feita por aqueles que na literatura constantemente invocam a palavra humano, e se esquecem do homem, filho de Deus, na realidade concreta.
Pelo homem húngaro, achincalhado e morto, sem discussão e sem perdão, aos assassinos nos erguemos em claro, definitivo e revoltado protesto.
Sophia de Mello Breyner Andresen,
Ruy Cinatti e Francisco de Sousa Tavares
Diário Popular, Lisboa, 20 de Novembro de 1956, pp. 1, 6
Nota
Inicialmente publicado a 28 de novembro de 2020 no jornal digital Observador, a quem o Centro Nacional de Cultura e Vasco Rosa agradecem a possibilidade desta reprodução.