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Alberto Manguel muda-se para Lisboa e traz consigo a sua biblioteca

Escritor e ensaísta argentino doa o espólio da sua biblioteca para a criação do Centro de Estudos de História da Leitura.

Alberto Manguel em Lisboa.© Direitos reservados


O escritor Alberto Manguel, de 72 anos, ex-diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, 
dedicou parte da sua atividade, enquanto tradutor, ensaísta e romancista, ao estudo da história da leitura e foi construindo uma enorme e rica biblioteca, constituída por cerca de 40 mil volumes de literatura e não ficção nas áreas das artes e humanidades. Agora, o autor vai oferecer o seu espólio pessoal ao Centro de Estudos de História da Leitura, que será criado na capital portuguesa. O protocolo que estabelece as condições da doação vai ser assinado no dia 12 de setembro na Feira do Livro de Lisboa, pelo escritor e pelo presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina.

Também Manguel, que tem visitado regularmente o nosso país, para apresentar as suas obras e participar em encontros literários, irá mudar-se para Portugal. "Apanho o avião amanhã!", garantiu à revista Lire. Os livros, que estão no Canadá, farão mais tarde a travessia intercontinental.

Alberto Manguel será o diretor do Centro de Estudos de História da Leitura, que será instalado no Palacete dos Marqueses de Pombal, na Rua das Janelas Verdes, ocupando uma área aproximada de 600 metros quadrados, incluindo espaços de leitura, de escrita e de eventos. Para tal irá receber obras de remodelação profundas que irão demorar de 16 a 24 meses. Em comunicado, a câmara municipal explica que este centro irá reafirmar "Lisboa como ponto de encontro de culturas e línguas, internacional e intercultural".

O Conselho Honorário do centro irá integrar escritores como a prémio Nobel de 2018 Olga Tokarczuk, de nacionalidade polaca, Salman Rushdie, o autor britânico de origem indiana, a canadiana Margaret Atwood, o poeta e cardeal português Tolentino de Mendonça, atualmente arquivista e bibliotecário do Vaticano, e o prémio Camões 2019, o brasileiro Chico Buarque.

O jovem leitor de Borges

Escritor, ensaísta, editor e tradutor nascido em 1948, Alberto Manguel tem origem argentina e nacionalidade canadiana. Ainda jovem, em 1964, trabalhava em part-time na livraria Pygmalion - "um dos pontos de encontro na cidade por quem se interessava por literatura", lugar onde a proprietária, que fugira do nazismo na Europa, importava o que havia para ler dessa mesma Europa e dos Estados Unidos - quando Jorge Luis Borges, que era cliente assíduo e sofria já de uma cegueira progressiva, um dia lhe perguntou se queria ler-lhe livros na sua casa. O jovem estudante tinha 16 anos mas aceitou a tarefa e cumpriu-a durante os quatro anos que se seguiram. A história foi toda contada na obra Alberto Manguel com Borges, publicada em junho passado.

Manguel tornou-se assim leitor de Borges entre 1964 e 1968, ano em que se mudou para a Europa. Viveu em Espanha, França, Itália e Inglaterra, onde foi leitor e tradutor para várias editoras. Editou antologias de contos sobre vários temas e é um ensaísta e romancista premiado, autor de obras como Uma História de Leitura ou História Natural da Curiosidade. Recebeu, entre outros, o Prémio Formentor das Letras, o Prémio Gutenberg e o Prémio Alfonso Reyes.

Uma biblioteca em movimento

"Em todos os lugares onde me instalei, começou a crescer uma biblioteca como que por geração espontânea. Colecionei livros em Paris, em Londres, em Milão, no calor húmido do Taiti (os meus romances de Melville ainda têm traços de bolor polinésio), em Toronto e em Calgary. Depois, quando chegava a hora de partir, embalava-os em caixas e obrigava-os a esperar com a paciência possível em arrecadações tumulares, na esperança incerta da ressurreição", contou no livro Embalando a Minha Biblioteca, publicado em 2018.

Em 2000, mudou-se para o vale do Loire, em França, onde, com a sua mulher, restaurou um antigo presbitério para aí instalar a sua extensa biblioteca. Nesse livro conta como teve a certeza de que queria viver para sempre naquela "pacata aldeia" francesa assim que abriu "as duas portas altas que conduziam da entrada ao jardim". Viveu nela durante 15 anos. Mas afinal teve de se mudar outra vez: "Enganei-me", confessou.

"Muitas vezes, senti que a minha biblioteca explicava quem eu era, me conferia um eu sempre em mudança, que se transformava constantemente ao longo dos anos", escreve Manguel, admitindo que se sentiu "desesperadamente infeliz" quando disse adeus à sua biblioteca. "Se desembalar a biblioteca é um ato selvagem de renascimento, embalá-la é sepultá-la ordenadamente antes do julgamento aparentemente final."

Desde então, Alberto Manguel andava à procura de um sítio onde instalar a sua biblioteca. Os livros encontram-se encaixotados num armazém da Lemeac, a sua editora no Canadá. Em março de 2019, várias personalidades do Quebeque pediram ao presidente da câmara, Régis Labeaume, para criar condições para acolher a biblioteca de Manguel. Apesar do interesse de Labeaume e até da Biblioteca Nacional do Quebeque, não foi possível disponibilizar financiamento para o projeto. O autor recebeu várias propostas e acabou por aceitar a de Lisboa.

A leitura como forma de rebelião

Entre 2016 e 2018, tal como Jorge Luis Borges, foi diretor da Biblioteca Nacional da Argentina. Aí, deu início a um projeto de formação de professores a que chamou "apaixonados pela leitura", por acreditar que as crianças aprendem por imitação, e que pessoas verdadeiramente apaixonadas pelos livros deixam transparecer essa paixão, conquistando aqueles que ensinam.

"Há que ser visivelmente apaixonado. É a única coisa que podemos fazer" para lutar contra os preconceitos de uma sociedade marcada pelos valores do consumo, disse à Lusa, numa entrevista em 2019, salientando que, "na história da escrita, os leitores nunca foram a maioria, sempre foram a elite, mas é uma elite à qual todos podem pertencer, é como um clube elitista, mas com as portas abertas".

Para Alberto Manguel, a tarefa de criação de leitores "é dificílima" na "sociedade suicida" em que vivemos, e a esperança está na "inteligência e na imaginação dos jovens". "Se conseguirmos dizer-lhes que a melhor forma de rebelião está na sua inteligência, que a leitura é a forma mais efetiva de subversão, quem sabe podemos conseguir algo", declarou, salientando que, "se cada leitor converter um leitor, imediatamente duplicamos o número de leitores".

"Vimos ao mundo como criaturas capazes de refletir, de imaginar, de ter um sentido ético e muito disto na sociedade da escrita passa pela literatura, aprendemos empatia através das personagens da ficção, aprendemos a comunicar uns com os outros, aprendemos a memória dos nossos antepassados, a experiência passada."

"Se a esses leitores em potência se inculca desde muito cedo não confiar na sua inteligência, não deixar que a sua imaginação se exercite, seguir as restrições dos sistemas educativos, que atualmente são campos de treino para o escritório e a fábrica, gradualmente tornamo-nos seres que não refletem, porque os valores da reflexão e da leitura são o difícil", declarou.


por Maria João Caetano, in Diário de Notícias | 10 de setembro de 2020
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

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