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O cinema vai invadir o centro histórico de Viseu, num ato de "resiliência"
Depois dos meses de incógnitas, arranca esta terça-feira uma nova edição do Cinema na Cidade, festival de cinema ao ar livre que se realiza em Viseu há 38 anos. O regresso ao Parque Aquilino Ribeiro, emblemático local onde o evento se estreou em 1982 e que consegue acolher 200 pessoas mesmo sob as normas de distanciamento, é uma das grandes novidades deste ano.
A hipótese de o Cinema na Cidade deitar a toalha de 2020 ao chão e começar a planear antecipadamente a edição de 2021 não teria sido uma decisão chocante num Verão maioritariamente condenado à doutrina dos adiamentos. Foi uma decisão que o Cineclube de Viseu, que organiza este pequeno festival de cinema ao ar livre desde 1982, manteve em cima da mesa até ao fim de maio, quando o desconfinamento ainda avançava a passos comedidos e as perspetivas de reabertura das salas de cinema em Portugal eram pouco claras. Mas a partir desta terça-feira, e até dia 31, os viseenses vão poder ter o desejado e arejado encontro com o big screen a que estão habituados: adaptado à pandemia e em contacto próximo com a sua própria história, o Cinema na Cidade está pronto para uma edição que será um ato de “resiliência” face aos desafios impostos pelo novo coronavírus.
No que diz respeito à programação, a organização não alterou muito a dinâmica da mostra: um filme por noite (com o bónus de uma curta-metragem no dia inaugural), sempre pelas 21h30, numa oferta que foi pensada para convocar “dois públicos diferentes”. Tito e os Pássaros, animação brasileira realizada em 2018 pelo trio de André Catoto, Gabriel Bitar e Gustavo Steinberg, marcará na terça o arranque da iniciativa, acompanhada por Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias, a multipremiada curta da portuguesa Regina Pessoa. Na sessão de quarta-feira, será exibido O Falcão Manteiga de Amendoim, de Tyler Nilson e Michael Schwartz, que chegou às salas no ano passado e que reúne a dupla de Shia LaBeouf e Zack Gottsagen.
É a primeira metade do festival, a metade mais assumidamente mainstream, se quisermos, e terá lugar no Parque Aquilino Ribeiro. Um lugar histórico para o Cinema na Cidade, ou não fosse onde, há 38 anos, o Cineclube de Viseu fez a sua primeira projeção ao ar livre. No fim do mês passado, Rodrigo Francisco explicava ao PÚBLICO que a Praça D. Duarte, que há muito substituíra o parque no evento, teria a sua plateia reduzida a apenas 75 lugares em contexto de pandemia, ao passo que, mesmo com as regras de distanciamento na equação, o Aquilino Ribeiro conseguirá acolher “duas centenas de pessoas sem grandes problemas”. O regresso a casa trata-se então de um feliz acidente, e não deixa de ser curioso reparar que, perante os constrangimentos suscitados pela pandemia, este acontecerá com o mesmo “espírito aguerrido” que foi necessário para dar início ao Cinema na Cidade em 1982.
Nos dias 30 e 31, a mostra passa para outro espaço que tão bem conhece: o Museu Nacional Grão Vasco, “um dos ícones do centro histórico de Viseu”. Este ano, assinala Rodrigo Francisco, o espaço acolherá duas longas-metragens que simbolizam momentos de “rutura e transformação” no cinema japonês e americano, respetivamente. Na quinta-feira, a organização exibe A Espada da Maldição, filme assinado por Kihachi Okamoto em 1966 e que acompanha a história de um samurai sem escrúpulos que, graças aos seus vários assassinatos frios e impiedosos, atrai um grupo de inimigos em busca de vingança. A última noite ficará por conta de Veneno (1991), de Todd Haynes, que reúne três histórias aparentemente sem grande ligação (um menino que dispara sobre o pai e voa para longe da cena do crime, um prisioneiro que se apaixona por outro recluso e um cientista que bebe o elixir da sexualidade, transformando-se num horripilante assassino contagioso), numa obra que cruza drama, ficção científica e terror.
Estas sessões no Museu Nacional Grão Vasco serão o yin que responderá ao yang do Parque Aquilino Ribeiro: filmes para toda a família na primeira metade do festival e cinema de autor para os cinéfilos mais sedentos na segunda. De resto, o Cineclube de Viseu foi forçado a dar uma nova roupagem aos cine-concertos, uma tradição do Cinema na Cidade tão forte como a programação pluridisciplinar (no ano passado, As Ceifeiras de Pias, grupo de cante alentejano, acompanharam a exibição d’Os Cantadores de Paris, filme de 2017 realizado por Tiago Pereira, autor do projeto A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria). Rodrigo Francisco não quer estragar a surpresa, mas avança que dois músicos locais foram desafiados pela organização a musicar um par de filmes, e diz igualmente que o resultado final, uma colaboração de 40 minutos, estará disponível online até ao dia 2 de agosto.
Por falar em online, há ainda duas oficinas breves no cardápio, que essencialmente funcionarão como o “serviço educativo” do Cinema na Cidade: no YouTube, os mais pequenos poderão acompanhar workshops lúdicos sobre “animação, arte e magia”, entretendo-se com tarefas que podem ser desenvolvidas em casa com “recursos reduzidos”. É, no fundo, uma solução para que o festival “não sofra assim tanto” com as condições atuais – solução essa que, servindo-se da interação digital, tentará também não deixar que as “fórmulas” que cresceram durante a pandemia desapareçam tão cedo.
O resto é o que já se sabe no que diz respeito aos ajustes logísticos, entre a entrada limitada aos que têm reserva prévia e o uso obrigatório de máscara. É o trabalho de adaptação a novas exigências que por esta altura não mais estranhamos, mas que, aponta Rodrigo Francisco, não deixa de ser “difícil e exigente” para a organização. Ainda assim, garante o responsável, são esforços (e despesas) que valem a pena. O Cinema na Cidade está pronto para uma nova ronda, num Verão em que muitos festivais não tiveram a mesma sorte. É o cinema de volta ao centro histórico de Viseu; em boa verdade, os dois nunca se separaram.
por Daniel Dias in Público | 27 de julho de 2020
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público