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De fora para dentro: Maria Beatriz (1940-2020)
Maria Beatriz utilizou processos como a citação e a colagem para afirmar uma individualidade que tirava da sombra e do obscuro uma luz carregada de lirismo.
A pintura portuguesa do século XX ganhou uma dimensão internacional graças a duas pintoras expatriadas: Maria Helena Vieira da Silva e Paula Rego. Outros pintores viveram fora de Portugal, como António Dacosta, Costa Pinheiro, René Bertholo, Júlio Pomar, por períodos mais ou menos longos, ou nalguns casos em definitivo, e nestes últimos destacam-se dois que acabamos de perder nos países que escolheram como residência: José Barrias, em Milão, e Maria Beatriz, em Amesterdão. Essa escolha de um exílio que, em tempos de democracia, já não é político mas pessoal ou cultural, faz com que os seus nomes não encontrem, entre nós, o prestígio ou o conhecimento que outros, com uma presença maior no mundo das nossas galerias e salas de exposição, têm; mas não será menor a sua importância no campo de experiências e projectos que as suas obras trouxeram.
O caso de Maria Beatriz distingue-se pela forma como o seu trabalho aproveitou uma vida nesse mundo em que o acesso à grande pintura fazia parte do seu quotidiano, da pintura holandesa a outras a que tinha acesso no seu espaço próximo de todos os grandes museus da Europa além-Pirinéus. Maria Beatriz utilizou processos como a citação e a colagem para afirmar uma individualidade que tirava da sombra e do obscuro uma luz carregada de lirismo, sugerindo por vezes um percurso em que é possível ler um diálogo com os Mestres, a começar por Van Gogh que lhe inspirou uma sequência baseada nas batatas da fase inicial do pintor, exposta em 2000 na galeria Diferença, até aos nus femininos que expôs na Galeria Ratton, já em 2016-17, em que surge um erotismo que vai buscar a sua raiz às Vénus renascentistas para terminar num século XIX que vai de Ingres a Manet, usando a colagem de uma forma inovadora e inteiramente pessoal.
Não creio que se possa, para lá dessa situação literal que é a morte física da pessoa, falar de morte quando referimos um artista. Nenhum dos nomes acima referidos, que conheci pessoalmente, com excepção de Vieira da Silva e de Dacosta, a que gostaria de acrescentar João Vieira e Manuel Amado, desapareceram do meu horizonte: claro que sinto a sua falta física, com destaque para o amigo mais próximo que foi Pomar, mas cada obra sua permite o reatar e o aprofundar desse diálogo que mantivemos em múltiplos encontros, e que se prolongava quando mostravam e explicavam nos seus ateliers as obras em curso.
É o caso com Maria Beatriz. A sua figura discreta talvez não deixasse adivinhar essas explosões visuais que nasciam das soturnas batatas vangoghianas; ou o erotismo fulgurante das imagens femininas, algumas ligadas ao conceito de modelo que tem vindo a ser posto em destaque na crítica de arte francesa (sim, ainda tenho a França como referente cultural, que me desculpem os anglo-americanófilos a quem cada vez mais desculpo menos coisas), outras a um realismo que, no fundo, está por detrás do seu universo.
Se em certos momentos o objecto se esconde sob a cor que evoca a abstracção, é quase sempre o gosto pela imagem concreta que se encontra na sua pintura, e isso decorre do prazer com que a mão evolui ao longo do desenho de cada figura. A precisão com que o executa não deixa de evocar os predecessores que a essa arte se dedicaram desde a época dos flamengos, não obviamente em termos de imitação mas antes da forma como capta o olhar e o faz descobrir o génio da inventio que, na retórica romana, acompanhava a dispositio, ou seja, a arte de organizar no espaço os elementos fornecidos pela memória, indispensáveis para que o resultado final capte essa admiração que, por muito que custe aos que defendem minimalismos de facilidade para esconder a ignorância, é parte integrante do funcionamento do dispositivo estético.
Esperemos que a sua obra não se perca de uma apreciação mais vasta do público e que possa estar disponível, como merece, em colecções ou museus de acesso público, não se limitando a uma referência enciclopédica (nos tempos actuais diz-se wiquipédica) que reduz tudo a um conhecimento de superfície. Não acontece muitas vezes, mas guardo na memória alguns dos quadros ou desenhos que vi em momentos e tempos diversos; e se não fosse essa capacidade de dar vida a cada fase do seu trabalho, infelizmente demasiado discreto em termos nacionais, nenhum dos que tiveram o privilégio do seu contacto guardaria tão presente essa memória.
por Nuno Júdice in Público | 12 de julho de 2020
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público