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Maria de Sousa (1939-2020)
Maria de Sousa foi uma das mais importantes cientistas portuguesas do século XX.
Imunologista nos Estados Unidos e Inglaterra, a ela se deve uma importante descoberta que tem o seu nome e que permitiu um avanço muito significativo no tratamento das doenças oncológicas. Mulher de cultura e de ciência deixa um grande vazio, impossível de preencher.
O CNC homenageia sentidamente e com amizade a sua memória e apresenta à sua família sentidas condolências.
>> Leia aqui A Vida dos Livros sobre a sua obra "Meu Dito, Meu Escrito"
Morreu a imunologista Maria de Sousa
Maria de Sousa nasceu em 1939 em Lisboa. O seu percurso como investigadora decorreu entre Inglaterra, Escócia, Estados Unidos e Portugal, onde regressou em 1984, quando a ciência portuguesa estava muito pouco desenvolvida.
A imunologista Maria de Sousa morreu na noite desta terça-feira, aos 81 anos, nos cuidados intensivos do Hospital São José (em Lisboa), vítima de covid-19 e depois de uma semana de internamento. Maria de Sousa, professora emérita da Universidade do Porto, percebeu a migração organizada dos linfócitos, células do sistema imunitário, e tem hoje por essa descoberta o seu nome em qualquer manual sobre o sistema imunitário.
Maria de Sousa nasceu em Lisboa em 1939. Depois de se ter formado em medicina em 1963, pela Faculdade de Medicina de Lisboa, começou a sua carreira dedicada à investigação científica. Inglaterra, Escócia, Estados Unidos e Portugal – assim se pode desenhar em traços largos a geografia científica da sua vida.
Entre 1964 e 1966, esteve nos Laboratórios de Biologia Experimental em Mill Hill, em Londres, como bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi em Londres que fez uma grande descoberta que consta hoje em qualquer manual de imunologia.
Até 1964, pensava-se que todos os tipos de linfócitos – células do sistema imunitário fundamentais no combate a doenças e infeções – vinham do timo, uma glândula situada no peito, entre o esterno e o coração. Pensava-se ainda que, depois do nosso nascimento, os linfócitos migravam do timo e iam proliferar e amadurecer nos órgãos linfáticos periféricos, como os gânglios linfáticos e o baço. Maria de Sousa percebeu que não era bem assim.
Fez experiências em ratinhos, aos quais foi removido o timo logo a seguir ao nascimento. Verificou então que esses ratinhos sem timo continuavam, afinal, a ter linfócitos nos órgãos linfáticos periféricos. Mais: percebeu que nestes órgãos linfáticos periféricos dos ratinhos desprovidos de timo havia espaços deixados vazios – ou seja, espaços destinados precisamente aos linfócitos do timo. Portanto, nos órgãos linfáticos periféricos havia assim áreas para os linfócitos do timo (os linfócitos T) e áreas para outro tipo de linfócitos, que estavam ocupadas por eles. Por outras palavras, havia áreas nos órgãos linfáticos periféricos dependentes dos linfócitos que migravam do timo. Essa zona reservada aos linfócitos do timo é hoje conhecida por Área T.
Estas descobertas foram publicadas na revista Journal of Experimental Medicine e na revista Nature, respetivamente em Janeiro e Dezembro de 1966. O título do primeiro artigo científico com as descobertas de Maria de Sousa é precisamente “Áreas dependentes do timo nos órgãos linfáticos em ratinhos recém-nascidos timectomizados”.
Mais tarde, em 1971, Maria de Sousa deu um nome ao fenómeno de migração dos linfócitos de diferentes origens – tanto do timo como da medula óssea, onde se forma outro tipo de linfócitos – com destino a microambientes específicos nos órgãos linfáticos periféricos e aí se organizarem em áreas bem delineadas. Chamou-lhe “ecotaxis”.
Em suma, é uma viagem com lugar reservado à partida.
Em entrevista a Anabela Mota Ribeiro, publicada em 2014 no PÚBLICO, Maria de Sousa falava das suas descobertas relativas à Área T e à ecotaxis. “Creio que todos saberão que temos linfócitos a circular. O que muitos não saberão é que os linfócitos não são uma população homogénea, com a mesma pátria. Uns nasceram no timo e saíram para a circulação no período a seguir à nascença (período neonatal), outros fora do timo, na medula óssea. Essa distinção não era clara em 1964. Ainda se pensava que talvez viessem todos do timo”, explicava então.
“O meu trabalho consistiu na observação de lâminas de cortes de órgãos linfáticos periféricos de ratinhos que tinham tido o timo removido no período neonatal. As minhas observações demonstravam que esses animais timectomizados à nascença ainda tinham linfócitos. E mais, os espaços vazios de linfócitos eram distintos dos espaços onde havia linfócitos, o que significava que as células pareciam saber para onde ir.” Mais tarde, estes resultados foram demonstrados por uma técnica (a auto-radiografia) que permitia seguir células marcadas radioactivamente. “As do timo iam para o território a que chamámos ‘área dependente do timo’ e que hoje é conhecida por Área T. E achei esse fenómeno de as células saberem para onde vão tão importante que lhe dei um nome: ecotaxis.”
Quando deu o nome à migração dos linfócitos, Maria de Sousa já tinha partido de Londres rumo à Escócia, em 1967. Na Universidade de Glasgow doutorou-se então em imunologia em 1972, permanecendo na Escócia até 1975. Daí seguiu para os Estados Unidos – para o Instituto Sloan Kettering para a Investigação do Cancro (em Nova Iorque), a Faculdade de Medicina de Cornell (em Nova Iorque) e a Faculdade de Medicina de Harvard (em Cambridge, Boston).
A partir de 1978 começou a dedicar-se ao estudo de uma possível função do sistema imunitário na proteção da toxicidade do ferro. Este interesse conduziu-a a estudos do sistema imunitário em doentes com uma doença genética de sobrecarga de ferro – a hemocromatose hereditária. É esta linha de investigação que a traz ao Porto.
Em 1984, regressou a Portugal tendo vindo a contribuir para o desenvolvimento científico e académico do país, integrando como professora o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) e como investigadora o Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC), atual Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S), ambos no Porto.
Logo em 1985 tornou-se professora catedrática de imunologia no ICBAS. Também a partir de 1985 criou uma equipa de investigação na área da hemocromatose, repartida por três instituições da Universidade do Porto: o ICBAS, o Hospital Geral de Santo António e o então novo IBMC. Ainda em 1985, iniciou no ICBAS o mestrado de imunologia.
Muito destacado por muita gente foi o contributo de Maria de Sousa para o desenvolvimento da ciência em Portugal graças à criação, em 1996, do Programa Graduado em Áreas da Biologia Básica e Aplicada (GABBA, na sigla em inglês). Em 1996, o mestrado de imunologia do ICBAS fundiu-se com três outros mestrados da Universidade do Porto, nas faculdades de Medicina e de Ciências, resultando no primeiro programa doutoral de uma universidade portuguesa em biologia básica e aplicada. Maria de Sousa foi uma das fundadoras do GABBA, que já permitiu a centenas de investigadores fazerem o doutoramento.
A 16 de outubro de 2009, aos 70 anos, jubilou-se da atividade docente no ICBAS, dando a sua última aula intitulada “Uma escola sem muros”.
Também se destaca o seu contributo para a implantação da avaliação externa e independente dos centros de investigação portugueses, que não existia na década de 80 em Portugal, ao ter sido convidada para coordenar esse processo na área das ciências da saúde por José Mariano Gago (1948-2015), então presidente da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT), que deu origem à atual Fundação para a Ciência e a Tecnologia, a principal financiadora pública do sistema científico português.
Nesse sentido, ficaram memoráveis as Jornadas Nacionais de Investigação Científica e Tecnológica, em 1987, organizadas por Mariano Gago e que reuniram a pequena comunidade científica portuguesa no Fórum Picoas, em Lisboa. Mariano Gago ouviu durante essas jornadas a comunidade científica, as suas propostas de desenvolvimento da ciência no país, as suas necessidades, dificuldades, atrasos, e depois lançou o Programa Mobilizador de Ciência e Tecnologia, para financiar projetos de investigação. Consideradas hoje um dos marcos da política de ciência e investigação em Portugal, Maria de Sousa esteve presente nas jornadas de 1987, tal como esteve presente em 2017 na celebração dos 30 anos desse encontro da comunidade científica.
Manuel Heitor, o atual ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, relembra agora num texto publicado no PÚBLICO que foi com Maria de Sousa, juntamente com o neurocientista Fernando Lopes da Silva, “que aprendemos a ser sujeitos em Portugal a uma avaliação científica independente, quando José Mariano Gago era presidente da JNICT no final dos anos 80”: “Inicialmente testada para as ciências da vida sob a liderança da Maria, esta prática que hoje nos parece tão obvia, só viria a ser alargada a todas as outras áreas científicas há 25 anos, com a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia.”
No rol de distinções e reconhecimento público incluem-se o Grande Prémio Bial de Medicina em 1995, o Prémio Estímulo à Excelência em 2004 e a Medalha de Ouro de Mérito Científico em 2009, ambos atribuídos pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Seguiram-se o Prémio Universidade de Coimbra 2011 e o Prémio Universidade de Lisboa 2017.
Ao mais alto nível, foi condecorada por três Presidentes da República: em 1995 por Mário Soares com o grau de grande-oficial da Ordem Infante D. Henrique; em 2012 por Aníbal Cavaco Silva com o grau de grande-oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada; e em 2016 por Marcelo Rebelo de Sousa com a grã-cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, insígnia destinada a distinguir o mérito literário, científico e artístico.
O Presidente da República destaca não só a carreira académica e científica “brilhante” como também o “exemplo de cidadania” de Maria de Sousa. “Deixa um legado incontornável na ciência e um exemplo maior de rigor, de exigência e de compromisso cívico e cultural”, pelos quais o Presidente da República “gostaria de agradecer em nome de Portugal”.
“Na ciência, foi fundamental no desenvolvimento de várias instituições de referência em Portugal, bem como em todos os passos importantes na consolidação do sistema científico português ao longo das últimas três décadas. Nesse papel, soube sempre combinar, de modo inigualável, uma grande exigência científica com um elevado sentido crítico”, refere a mensagem. “Era uma mulher inconformada e persistente, procurando sempre transmitir um sentido de exigência a todos”, sublinha ainda Marcelo Rebelo de Sousa, que recentemente visitou Maria de Sousa. “Era também alguém que tinha uma visão ampla do mundo, que não se confinava à academia, mas que abraçava com entusiasmo a relação entre conhecimento e sociedade, ciência e arte.”
por Teresa Firmino in Público | 14 de abril de 2020
notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público