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A "capela Sistina da pré-história" mudou-se lá para casa

A caverna de Chauvet, descoberta em 1994 no Sul de França, torna-se visitável graças a projeto imersivo, que nos desvenda arte com 36 mil anos.

Foto de L. Guichard/Perazio/smergc


O desfiladeiro de Ardèche surge por vezes identificado como o Grand Canyon da Europa. Mas o que deu fama mundial a este departamento no Sudeste de França é a mais antiga galeria de arte pré-histórica do mundo, que agora se pode visitar sem sair de casa.

A caverna de Chauvet tem centenas de pinturas, a maioria de animais, com 36 mil anos. Foi descoberta por três espeleologistas franceses, em 1994, e foi batizada com o apelido de um deles, aquele que mais insistiu nos trabalhos que permitiram encontrar a “caverna das maravilhas”.

O cineasta Werner Herzog dedicou-lhe um filme (2010) a que chamou A Gruta dos Sonhos Perdidos. Noutros textos, chamam-lhe também a “Capela Sistina da pré-história". Mas tal epíteto já depende do autor, porque é também usado para outros dois exemplares relevantes de arte pré-histórica em cavernas, como Altamira (na Cantábria, em Espanha) e Lascaux (Dordonha, França)

No vale do Ródano, junto ao rio Ardèche, a visita à gruta original está reservada a cientistas. Para o público em geral foi feita uma réplica construída durante quatro anos, por 55 milhões de euros. Abriu a 25 de Abril de 2015.

Pretendia-se assim evitar os problemas de Altamira e de Lascaux, onde as paredes com pinturas milenares foram contaminadas por fungos e a rocha calcária se degradou devido ao carbono proveniente da respiração humana.

Portanto, o original datado do Paleolítico Superior foi substituído por um complexo do século XXI, construído a alguns quilómetros de distância da verdadeira caverna. Foram meticulosamente reproduzidas centenas de pinturas rupestres e artefactos com 36 mil anos e que são testemunho da presença de antepassados do homem moderno. Melhor do que nada, pensarão alguns. “Ridículo”, disseram outros, menorizando a réplica. Ninguém vai a um museu para ver um falso Rembrandt, certo? 

Guiados por uma jedi

Por vezes, é a única hipótese, para quem pode deslocar-se. Para os restantes, já havia a visita virtual no site oficial, e que permite ver, através de um navegador de Internet, o original que permanece guardado atrás de uma porta de metal que pesa meia tonelada e que tem um código de acesso que só três pessoas conhecem.

Porém, o Syndicat Mixte de l'Espace de Restitution de la Grotte Chauvet, numa colaboração com o Google, permitiu o lançamento de outro valioso recurso digital. Desde 2006, a caverna original foi “cartografada” a laser e por fotogrametria e o resultado desses 14 anos de trabalho está disponível desde o final de Fevereiro em qualquer ecrã ligado à Internet.

Além de fotografias e textos, podemos fazer uma visita virtual, acompanhada em inglês pela atriz Daisy Ridley, nossa conhecida da saga Star Wars, na qual interpreta a personagem de Rey (em francês, a narradora é a atriz belga Cécile de France, que conhecemos de A Residência Espanhola e As Bonecas Russas, por exemplo). A produção coube à conceituada empresa Atlas V.

A reprodução em vídeo 360 dessa visita (que se torna imersiva para quem a descarregar da plataforma SteamVR e tiver acesso a uns óculos de realidade virtual HTC Vive ou Oculus Rift) está disponível no YouTube

Projetar na parede de casa

Ironicamente, o lançamento deste recurso através da plataforma Google Arts & Culture acontece na mesma altura em que boa parte do planeta deixou de viajar e se recolhe em casa para travar a pandemia de covid-19. Para quem não sai de casa, uma visita à caverna de Chauvet é uma oportunidade de “viajar” até ao dealbar da arte. Que também pode ser projetada nos ecrãs usando as paredes lá de casa. Basta para isso optar pela visita em Realidade Aumentada, disponível na aplicação Arts & Culture do Google, (iOS e Android). 

Nesta opção, pode-se entrar na chamada galeria de bolso (pocket gallery), um recurso sobre o qual já aqui falámos em dezembro de 2018, quando o Google se associou a museus de todo o mundo para reunir sob um mesmo “teto” digital todas as obras de Vermeer, incluindo uma que está desaparecida já lá vão 30 anos. Na altura, perguntámos se estes recursos serão um vislumbre dos museus do futuro. Agora, poderemos alargar a questão a outras artes, à ciência, a outros locais que nos estão vedados, a viagens que não podemos fazer.

“Fomos abordados para criar um projeto original que pudesse captar toda a profundidade deste tesouro e partilhá-lo com todo o planeta, já que se trata de uma herança universal que pertence a toda a humanidade”, explica Sixtine Fabre, partner manager no Google Arts & Culture, responsável pelos mercados de França e Sul da Europa. A visita permite “parar” numa dezena de pontos de interesse no interior (bem como explorar algo no exterior).

A gruta foi classificada em 2014 pela UNESCO e que tem também amplo interesse geológico e paleontológico, já que é ainda um testemunho das peregrinações na idade do gelo, tanto de animais como dos nossos antecessores.

Entre os animais, destaque para o facto de alguns apresentarem mais do que quatro membros, em aglomerados numerosos, o que, à luz do fogo das cavernas, talvez sugerisse a ideia da imagem em movimento, como se fosse o antepassado do cinema.

54 exposições numa só morada

Embora as pinturas nas paredes calcárias da gruta sejam a parte mais relevante deste tesouro, há muito mais para ver. E isso pode ser constatado mesmo por quem não disponha de grandes recursos tecnológicos. Basta ter um equipamento móvel ligado à Net, instalar o Google Search, pesquisar a caverna de Chauvet e depois procurar o botão “Ver em 3D”.

Há 20 mil anos, a natureza encarregou-se de proteger este testemunho humano, quando uma rocha caiu e tapou a entrada. Foi preciso esperar muito tempo para que a caverna, que terá sido habitada em dois períodos distintos, voltasse a ver humanos. Somente muitos milénios depois do Homem de Cro-Magnon (designação em desuso), a 18 de Dezembro de 1994, o interior foi reencontrado.

Jean-Marie Chauvet, Christian Hillaire e Eliette Brunel estavam nessa altura nas redondezas a tentar estudar uma “enigmática emissão de ar quente” que vinha de uma brecha na rocha calcária. Chauvet insistiu que deveriam continuar a escavar. A história da descoberta é apenas um dos muitos motivos deste projeto a que se deu o nome Chauvet: conheçam os antepassados.

“Eliette Brunel foi a primeira a entrar. Para seu espanto, encontrou uma câmara cavernosa, com cerca de 30 pés [10 metros] de altura”, lê-se num dos recantos online que se pode explorar. “Christian foi mais longe, e acabaria por não só encontrar motivos de interesse geológico como também a mais antiga galeria de arte do mundo.”

O conteúdo é vasto e há algo para todas as idades e gostos. São 54 “exposições” num mesmo endereço, com mais de 350 artefactos digitalizados, em que cada “exposição” tem um tema próprio. Num caso pergunta-se por que é que os pré-históricos desenhavam em cavernas; noutro decifra-se quem era o Homem de Cro-Magnon.

Há seis modelos 3D, incluindo o crânio de urso e os “Frescos de cavalo”. Esta é uma das 14 espécies retratadas a carvão ou a ocre. Há também rinocerontes lanudos, leões, panteras e animais já extintos. E duas exceções humanas: umas mãos e uma vagina. O retrato de uma vulva é explicada pela posição social elevada da mulher nas sociedades de caçadores-recolectores (a Vénus de Willendorf, encontrada na Áustria, é uma escultura feminina “contemporânea” que terá sido esculpida há 28 mil anos e a mais antiga representação humana, com mais de 35 mil anos, a Vénus de Hohle Fels, também é a de uma mulher).




por Victor Ferreira, in Público | 4 de abril de 2020
notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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