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Até Shakespeare escreveu uma peça em quarentena, O Rei Lear
No início de 1600, a peste que matou 10% da população de Londres fez com que Shakespeare ficasse em quarentena. Foi quando escreveu O Rei Lear, que contém algumas deixas que confirmam o quanto o marcou a epidemia.
Tinha William Shakespeare nascido há poucos meses quando a peste bubónica devastou uma boa parte da população de Stratford-upon-Avon durante o verão de 1564. Decerto que o autor não ficou com memórias dessa peste, mas bastou passarem algumas décadas para sentir na pele, quando a capital britânica caiu em 1606 sob os efeitos, também devastadores, de uma outra peste e nesse momento Shakespeare foi testemunha do que estava a acontecer.
Até porque o bairro onde morava foi um dos mais afetados na capital inglesa e a sua própria senhoria uma das vítimas fatais. Além de que o teatro onde as suas peças eram representadas, o Globe, ter ficado fechado por muito tempo devido à doença. Esta praga já vinha a proliferar nos três anos anteriores, já matara 10% da população de Londres e já obrigara Shakespeare a isolar-se em casa em quarentena para escapar ao contágio.
Esta particularidade da vida de Shakespeare nunca interessou muito e não fosse a pandemia do covid-19 talvez a preocupação sobre os detalhes da vida do autor fosse mais saber quem foi Shakespeare de verdade e não os efeitos dessa quarentena na sua produção literária. Foi esta questão bastante da nossa atualidade que levou o especialista em Shakespeare e no Teatro Globe, Andrew Dickson, a investigar esse momento da vida do bardo e a publicar um artigo no jornal The Guardian que evoca os efeitos de epidemias e pandemias na vida das pessoas, focado na vivência de William Shakespeare.
Aliás, o efeito das pestes nos que viviam do teatro era imediato e com muito impacto. Porque os atores e todos os que estavam envolvidos no teatro eram dos primeiros a sofrer consequências, pois era ideia feita que eram responsáveis por muito da vida desregrada de parte da população e a causa dos castigos divinos. Tanto que um pregador da altura tinha a seguinte frase: "A causa das pestes é o pecado, e a causa do pecado as peças".
A peste que atingiu Londres entre 1603 e 1613, conta Andrew Dickson, fez com que os teatros estivessem fechados a maior parte desse tempo, cerca de 78 meses. Só que essa altura coincidiu com o apogeu da escrita de Shakespeare e confrontava-se com o teatro Globe fechado. No entanto, em 1606 uma das peças de Shakespeare foi representada pela primeira vez perante o rei Tiago I, antes de o Globe voltar a ser encerrado devido à peste, e muito das referências do texto diziam respeito a essa vivência.
Foi a peça O Rei Lear, que foi escrita um ano antes, durante os tempos que viveu em quarentena, e que possui um texto onde reproduz muito do caos vivido à época, os milhares de mortes e o desespero vivido naqueles tempos. A peça contém visões de uma realidade que deve ter impressionado o bardo e inspirado várias partes desse texto como nunca antes. O que se pode confirmar com várias referências à palavra praga nas falas dos personagens.
Estas tragédias das pragas não estão ausentes de outras peças de Shakespeare, como Romeu e Julieta e Macbeth, esta última escrita durante a epidemia de 1606. Mas é em O Rei Lear que os efeitos das epidemias estão mais presentes, onde refere que a transmissão do vírus se pode dar por via aérea e refere outros sintomas que agora fazem eco no ouvido de quem se confronta com a pandemia do coronavírus.
Para Andrew Dickson, as epidemias que aconteceram durante a vida de Shakespeare foram responsáveis pelos seus melhores trabalhos: o Rei Lear, Romeu e Julieta, Hamlet, Macbeth, António e Cleópatra. Não porque as escrevesse em isolamento obrigatório, à exceção de Rei Lear, e enquanto aguardava pela reabertura dos teatros; antes porque quando se libertava da quarentena entrava no frenesi criativo que o caracterizava.
João Céu e Silva, in Diário de Notícias | 23 de março de 2020
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias