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Um Atlas para viajar pelo território e pela literatura ao mesmo tempo

Perceber a evolução histórica das paisagens no território continental português através de excertos de obras literárias dos séculos XIX e XX é possível através do projeto Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental, uma parceria entre o IELT e o IHC, unidades de investigação da FCSH - Universidade Nova de Lisboa.

Pontos referenciados em Lisboa relativamente a excertos de "Os Maias"© Gonçalo Villaverde /Global Imagens


"Com um grande estrondo o comboio entrou na estação. A plataforma ficou logo cheia de gente, que ia, arrebatada, com embrulhos, chapeleiros, acotovelando-se. Saloios com os passos pesados das suas solas pregueadas, apressavam-se; havia nas faces um ar estremunhado e pasmado; uma criança chorava desesperadamente..."

Assim descrevia Eça de Queirós, em 1880, a Estação de Santa Apolónia, em Lisboa. Excerto literário da obra "A Capital", uma fulgente crítica aos oportunistas, aos falsos intelectuais, aos vícios de uma sociedade que vivia de expedientes menos honestos. Este é um dos 7.541 apontamentos que podem ser encontrados no Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental, coordenado por Natália Constâncio e Daniel Alves, investigadores do IELT e IHC, respetivamente.

Através da leitura de obras literárias de escritores dos séculos XIX e XX, foram selecionados excertos que, por sua vez, foram referenciados a uma unidade territorial. Um trabalho rigoroso e exaustivo que pode agora ser consultado a partir de qualquer dispositivo com ligação à Internet (smartphone, tablet, PC) na aplicação online deste Atlas.

Concebido em 2010 pela investigadora Ana Isabel Queiroz, do Instituto de História Contemporânea, o projeto esteve adormecido até 2018, altura em que a coordenadora lançou o desafio a Natália Constâncio e Daniel Alves para lhe darem um novo impulso.

O que começou por ser um trabalho académico está agora aberto a todos os utilizadores para consulta, permitindo perceber a evolução da paisagem portuguesa através de excertos literários. Um menu no topo da aplicação permite escolher por entre 194 autores, 385 obras, 7.541 excertos literários e 27 temas, num total de 2.926 localizações precisas. Com o sistema de informação geográfica (GIS) ligado, a aplicação identifica a localização do utilizador e mostra todos os excertos literários que constam da base de dados num raio de 500 metros.

Ao longo destes anos, o projeto, que envolve 50 colaboradores, tem dado origem a um amplo conjunto de atividades e publicações, académicas ou de divulgação, de entre as quais se destacam uma oficina internacional sobre paisagens literárias, workshops sobre literatura e paisagem, produções relacionadas com a representação espacial urbana através da utilização de GIS, ou o cruzamento da História e da Geografia na narrativa ficcional, desde o século XIX até à atualidade.

Percursos literários à distância de um clique

A aplicação sugere também percursos literários, nomeadamente os "Locais de Memória do 25 de Abril", que analisa o que foi retratado nos últimos 40 anos sobre a "Revolução dos Cravos", e que consiste num roteiro com perto de dez pontos emblemáticos. Uma ideia que, segundo os investigadores, poderá ser replicada a vários outros acontecimentos, outras paisagens. Ainda em fase de preparação, está a ser trabalhado um roteiro literário sobre a infância do escritor Urbano Tavares Rodrigues, em Moura.

"O objetivo é que o utilizador faça uma leitura da evolução da paisagem portuguesa através de obras escritas entre os séculos XIX e XX. Essa é a matriz do projeto", segundo Daniel Alves.

Através da geolocalização ou apenas consultando a aplicação, é oferecido ao leitor ferramentas para analisar a paisagem portuguesa, as suas gentes, costumes, os habitats animais, na perspetiva daqueles que escreveram sobre ela à época. Inicialmente, o trabalho contemplava apenas excertos retirados de romances, mas os investigadores estão a ampliar os objetivos. Evidência disso foi o ciclo dedicado a poetas presencistas, que teve lugar em outubro de 2019 em Castelo de Vide. "Este foi o primeiro grande passo para integrar a poesia no projeto", destacou Natália Constâncio, autora do ensaio "Ruínas e incertezas em Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde", de Mário de Carvalho.

Um trabalho muito meticuloso: cada excerto tem de ser revisto, validado

"A base de dados não está aberta a leitores, mas investigadores podem sugerir colaborações. Se o público em geral quisesse contribuir, perder-se-iam as rédeas. É um trabalho muito meticuloso, cada excerto tem de ser revisto, validado. Não podem haver incongruências no sistema", salvaguardou a investigadora.

No âmbito deste projeto, quem rumou a Vila Real este sábado (7 de março) pode assistir a um seminário sobre a figuração paisagística transmontana e duriense na literatura portuguesa, numa organização conjunta entre o Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental e a Fundação da Casa de Mateus. O programa juntou, numa mesma interpelação, olhares sobre as obras de Ferreira de Castro, Guerra Junqueiro, Branquinho da Fonseca, Miguel Torga, António Cabral, A. M. Pires Cabral e Mário de Carvalho.

O objetivo é que o Atlas saia da esfera académica. Nesse sentido, também estará presente na primeira edição do Festival Internacional de Literatura e de Língua Portuguesa - Lisboa Cinco L, que decorre entre 5 e 10 de maio. Programado e coordenado pelo livreiro e criador do Folio, José Pinho, a iniciativa visa celebrar a língua, os livros, a literatura, as leituras e as livrarias em Lisboa. A par disso, vai acontecer a 15 de março na Rede de Bibliotecas Escolares (RBE) uma apresentação do projecto. Estão também em curso conversações para um protocolo no âmbito do Projeto Ler + Mar, do Plano Nacional de Leitura (PNL), uma vez que, segundo os investigadores, o Atlas poderá ser uma ferramenta complementar para analisar as obras literárias recomendadas para o ensino secundário. Ou seja, pretende-se uma sinergia entre os livros e a aplicação online; "o que certamente seria muito apelativo para os mais novos", destacou Daniel Alves.

Estão também a ser estudados percursos literários focados no turismo com base nas obras literárias que integram este projeto. Além disso, concorreram este ano a um financiamento para fazer uma aplicação de realidade aumentada destinada à cidade de Lisboa. É intenção fazer uma aplicação que permita apontar para um determinado monumento ou edifício e ver no ecrã do telemóvel os textos literários que o descrevem.

De destacar ainda a parceria com a revista Wilder, com crónicas sobre aves descritas em determinadas obras, com análises antropológicas, literárias e biológicas. A rubrica intitula-se "Escrita com Asas".

Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental



por Sandra Gonçalves in Diário de Notícias | 8 de março de 2020
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Diário de Notícias

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