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"There is No Evil" ou a vitória de uma resistência política e ética
O Urso de Ouro para o iraniano There is no Evil volta a colocar Berlim como o Festival com valor simbólico político. Jeremy Irons e os seus jurados quiseram deixar mensagem. Alguns dos filmes fortes do festival têm já distribuição em Portugal.
Mais uma vez um júri de um grande festival não ligou aos "hypes" dos favoritos da imprensa e apresentou um palmarés algo inesperado. Tem sido assim em Cannes e Veneza nos últimos anos, como se os gostos dos críticos fossem quase barómetro para fugir. Na prática, é de acreditar que Jeremy Irons, presidente do júri, e os outros jurados, talvez nem tenham dado conta que havia manobras de "lobbies" para Todos os Mortos, de Caetano Gotardo e Marco Dutra e Alexander Platz, de Burhan Qurbani, terem direito a Ursos.
A vitória para o iraniano Mahoummad Rasoulof com There is No Evil tem qualquer coisa de "causa". Afinal, não deixa de ser um objeto de "mensagem", quatro histórias no Irão dos nossos dias nas quais a temática da pena de morte do país é abordada. Um filme sobre um Estado onde a liberdade individual é posta em causa. Um Urso de Ouro que volta a celebrar a tradição da Berlinale ter um travo político: Rasoulof esteve impossibilitado de viajar até à capital alemã pelo regime iraniano. Taxi, de Jafar Panahi, tinha vencido o Urso há cinco anos e esse cineasta iraniano continua proibido de viajar e ter apoios oficiais.
A 70.ª edição da Berlinale premiou ainda o novo cinema americano com Never Rarely Sometimes Always, de Eliza Hittman, um dos êxitos do Festival Sundance, aqui agraciado com o Urso de Prata. Mais outro filme com "tema": o aborto na América de Trump. O prémio mais cinéfilo, porventura com determinação do jurado Kléber Mendonça Filho (o cineasta de Bacurau, atualmente em exibição em Lisboa) foi para a Coreia do Sul; melhor realização, a de Hang Sang-soo, The Woman who Run.
Os ursos de interpretação não surpreenderam. A transformação de Elio Germano no razoável "biopic" italiano Volevo Nascondermi chegou para afastar a concorrência. Germano "apaga-se" na pele do pintor popular Antonio Ligabue, enquanto que a alemã Paula Beer foi distinguida em Undine, o novo de Christian Petzold.
Esta Berlinale aparentemente não foi totalmente feliz para os distribuidores portugueses. Ouvimos distribuidores a dizer que não fizeram negócio ou que os filmes mais apetecíveis foram para a Netflix. No Mercado, Perfect, de Olivia Wilde, foi parar ao catálogo do gigante do "streaming", tirando oportunidade de compra aos distribuidores mais independentes. Ainda assim, importante realçar que o bem simpático My Salinger Year, de Phillipe Falardeau, filme de abertura, foi garantido pela Outsider, enquanto o Urso de Ouro, There is No Evil, foi parar à Leopardo Filmes. A distribuidora de Paulo Branco garantiu ainda Undine, de Christian Petzold e Malmkrog, de Chisti Puiu (vencedor do prémio de realização da secção Encontros). Já a NOS assegurou obras como Police, de Anne Fontaine, Pinóquio, de Matteo Garrone e o bastante eficaz Persian Lessons, de Vadim Pearlman. Ainda da competição, a Midas informou que vai estrear Le Sel des Larmes, o magnífico conto de amor e traição de Phillipe Garrel.
Da secção Panorama um dos grandes filmes do festival, The Assistant, de Kitty Green, outra das pérolas trazidas de Sundance. Uma história do pós-#MeToo situada numa empresa de um "mogul" na qual uma assistente pessoal perde a dignidade numa situação de exploração laboral. Cinema choque interior com uma linguagem gélida e capaz de deixar no ar um "bafo" de ativismo político muito raro na indústria americana independente. Foi um dos títulos a deixar mais consensos, tal como A Metamorfose dos Pássaros, de Catarina Vasconcelos, mesmo assim ausente do palmarés oficial da secção Encontros. Filme que causou protestos de Ana Luísa Strindberg, da Portugal Film, agência ligada ao IndieLisboa, na sequência da ausência de representação oficial portuguesa na estreia. Um protesto nas redes sociais que está a abrir uma certa discussão no meio cinematográfico português.
Independentemente disto talvez seja imperioso recordar que A Metamorfose dos Pássaros foi dos filmes mais belos vistos na Berlinale. Uma poesia íntima e em rota de luto capaz de conquistar o prémio da crítica, da FIPRESCI.
por Rui Pedro Tendinha, in Diário de Notícias | 01 de março de 2020
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias