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Duas grandes exposições nos 500 anos da morte de Rafael, o génio sedutor do Renascimento

Auto-retrato de Rafael por volta dos 23 anos / Galeria dos Uffizi La Velada, ou Mulher com Véu (1515) será uma das 200 obras obras expostas no Palácio do Quirinal, em Roma - Galeria dos Uffizi Virgem das Rosas (1507) estará na exposição da National Gallery de Londres - National Gallery, Londres


Se 2019 foi, nas artes, o ano de Leonardo, com importantes exposições a assinalarem os 500 anos da sua morte, 2020 pode muito bem ser o de Rafael. Londres e Roma são paragens obrigatórias num roteiro que celebra a vida e a obra de um pintor inigualável.

Giorgio Vasari e o seu célebre livro com biografias dos artistas do Renascimento não são de fiar — reconhecem os historiadores há décadas que o Vidas (1550), um dos títulos fundadores da História de Arte, é uma obra literária, mais do que uma fonte documental —, mas não há como fugir à forma como descreve a morte de Rafael. Diz ele que o artista, chegado a casa depois de uma noite entregue aos “prazeres do amor”, com mais “excessos” do que era costume, caiu à cama com febre. Tratado pelos médicos de forma pouco adequada, culpa sua já que decidiu nada dizer sobre as aventuras noturnas, Rafael “sentiu-se a afundar” e decidiu, então, dividir o seu património entre a amante e os discípulos antes de se confessar. “E assim como ele embelezou o mundo com os seus talentos, assim podemos acreditar que a sua alma adorna o céu com a sua presença”, escreve o biógrafo.

Rafael Sanzio (1483-1520) morreu no mesmo dia em que nasceu, 6 de abril, possivelmente com sífilis, uma doença venérea omitida no relato romantizado de Vasari, que parece preferir vê-lo como um amante genial que foi um pouco longe de mais. Tinha apenas 37 anos e estava no auge de uma carreira que, embora curta, provara já do que era capaz este artista que trocou Urbino e Florença por Roma para trabalhar para o Papa Júlio II e que viu o seu imenso talento reconhecido — e provavelmente invejado — por mestres como Miguel Ângelo Buonarroti (1475-1564) e Leonardo da Vinci (1452-1519).

É precisamente para marcar os 500 anos da sua morte, mas sobretudo para festejar a sua vida e a sua obra, que estão previstas (ou já em curso) várias exposições em Itália, França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, com duas delas a merecerem destaque, as de Roma e Londres.

A primeira, no Palácio do Quirinal, abre já a 5 de março e é feita em colaboração com a Galeria dos Uffizi, em Florença, que, tal como o madrileno Museu do Prado, emprestará algumas das obras mais importantes de que dispõe do mestre de Urbino. Vai centrar-se na sua atividade em Roma, onde passou as últimas décadas de vida. A segunda, na National Gallery, será inaugurada a 3 de outubro e é uma retrospetiva que, com base nalguns dos seus desenhos e pinturas mais célebres, se vai estender às áreas da escultura, da poesia e da arquitetura, a que Rafael também se dedicou enquanto artista-humanista.

Retábulos e frescos, pinturas devocionais destinadas à intimidade, retratos oficiais e de alguns dos que lhe eram mais próximos, e extraordinários desenhos que são testemunhos da capacidade de inovar de Rafael, da perfeição com que trabalha sobre qualquer superfície, do rigor técnico e da graça, inigualável, das suas composições. Muitas das obras mais aplaudidas do artista (as que se podem deslocar, naturalmente) estarão nestas duas exposições.

“A sua vida foi curta, a sua obra prolífica, e o seu legado imortal”, lê-se no site da National Gallery, num breve texto escrito para abrir o apetite para Raphael (até 24 de janeiro de 2021), exposição com mais de 90 obras, entre elas empréstimos do Louvre e dos Uffizi, dos museus do Vaticano e do Prado. Objetivo: “Demonstrar que Rafael tem um papel central na história da arte ocidental e procurar perceber por que razão o seu trabalho continua a ser relevante.”

A influência de Leonardo

Nascido em Urbino em 1483, oito anos mais novo do que Miguel Ângelo e 31 anos mais novo do que Leonardo, Rafael ficou órfão antes de chegar aos 12 anos. O pai era um artista de fracos recursos que teve o mérito de lhe ter passado o seu gosto pela filosofia e pela cultura clássicas e de o ter levado para a pintura. A sua formação, que o fez conviver desde cedo com a obra de Piero della Francesca ou de Andrea Mantegna, começa na cidade onde nasceu, Urbino, de onde parte depois para Perúgia, Siena, Florença e, finalmente, Roma.

Trabalhando desde a adolescência, algo comum na época, Rafael torna-se um artista em nome próprio em 1500, ficando conhecido primeiro pelos seus retratos e representações da Virgem Maria. Muito influenciado por Perugino, difere nas opções do mestre no que toca à relação das figuras entre si ou com a arquitetura que as rodeia. As de Rafael parecem vivas, naturais, denotando o impacto que nele tiveram as técnicas — e as ideias — de Leonardo da Vinci, cuja obra teve oportunidade de ver em Florença.

É precisamente nesta cidade, um verdadeiro centro cultural do século XVI, que está em 1504, assistindo a uma espécie de combate de titãs que opõe o mestre de Mona Lisa a Miguel Ângelo. É na Toscana que, reconhecendo o génio de ambos, copia estes dois artistas para se aperfeiçoar, provavelmente sem imaginar que, mais tarde, o autor dos mais reconhecidos frescos da Capela Sistina seria seu rival em Roma. O grande Miguel Ângelo não se coibiria, aliás, de fazer uso de Sebastiano del Piombo (1485-1547), um artista cujo talento está muito longe tanto do de um como do de outro, nessa competição não oficial, como nos mostrou uma exposição da National Gallery de Londres em 2017.

Seja como for, e para fazer render os talentos de Rafael sem se furtar a comparações óbvias, a National Gallery define-o como um artista “mais versátil do que Miguel Ângelo” e “mais prolífico” do que Leonardo.

Os anos de Roma 

Em 1508, e já consciente da sua popularidade, o Papa Júlio II chama Rafael a Roma. O artista tinha 25 anos e um talento e uma personalidade que rapidamente farão dele o favorito do chefe da Igreja e das figuras mais influentes da cidade. Cardeais, banqueiros e outros nobres disputam uma oportunidade para serem por ele retratados, o que o obriga a trabalhar com uma legião de discípulos para conseguir dar resposta às muitas encomendas que não param de chegar. A acreditar nas palavras de Vasari, a sua “bondade” e “modéstia” conquistam todos os que com ele trabalham. Bonito e gracioso, leva a harmonia aonde quer que esteja e seduz qualquer um sem esforço.

Rafael é uma “estrela da Renascença” que está associada à “perfeição formal”, mas que também era capaz de mostrar emoção e “ternura”, escreve Jonathan Jones, crítico de arte do diário The Guardian, a propósito de uma exposição dos desenhos do artista também em 2017. “Os desenhos de Rafael são uma prova clara da sua mão e do seu olho, da maneira como via a vida, e de como punha o que sentia no papel. O homem que [nele] conhecemos não é um carreirista e favorito do Papa. É um espírito raro cuja arte é um espelho do seu idealismo.”

É para os aposentos de Júlio II no Vaticano, no entanto, que Rafael pinta o mais famoso dos seus frescos, A Escola de Atenas, que representa Aristóteles e Platão rodeados de outros filósofos e que inclui um auto-retrato do lado direito. Leão X mantém os privilégios que o seu antecessor concedera ao artista e em 1514, com a morte de Donato Bramante, faz de Rafael o arquiteto do Vaticano.

Absolutamente adorado no seu tempo, vivia como um príncipe, um deus mortal, e não como um pintor. Na sua obra, em particular nos seus desenhos, escreve o crítico do Guardian, mostra-nos que “não só é humano como vulnerável”. O ano Rafael promete aproximar-nos da figura.


por Lucinda Canelas in Público | 17 de fevereiro de 2020
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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