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Fernanda Lapa cumpre a promessa de encenar Orlando da Costa
Sem Flores nem Coroas demorou mais de 50 anos a estrear-se. A encenadora leva finalmente a palco, no Teatro São Luiz, um texto ao qual há muito prometeu dar vida.
Quando Fernanda Lapa se estreou enquanto encenadora, em 1972, o amigo e escritor Orlando da Costa foi assistir ao espetáculo (Deseja-se Mulher, de Almada Negreiros) e disse-lhe que gostava que ela colocasse em cena Sem Flores nem Coroas, um texto teatral que escrevera alguns anos antes. “Não tenho espaço, não tenho dinheiro, não tenho nada, mas garanto-te que o farei no dia em que tiver condições”, prometeu-lhe Fernanda Lapa. Os anos foram passando, Orlando da Costa foi lembrando que o texto continuava à espera de ser estreado e a encenadora, que entretanto criou a companhia Escola de Mulheres, achava que ainda não tinha ao seu dispor os meios indicados para dar vida de palco àquela história de uma família brâmane no momento da queda dos territórios indianos que, durante mais de quatro séculos, permaneceram sob alçada portuguesa.
Quando o escritor (pai do primeiro-ministro António Costa e do jornalista Ricardo Costa) morreu, em 2006, Fernanda Lapa percebeu que teria de cumprir com a palavra dada ao amigo e, por fim, apresentou o projeto ao Teatro São Luiz, Lisboa, onde estará em cena entre 10 e 19 de janeiro, protagonizado por João Grosso, Margarida Marinho, Carolina Amaral e Pedro Russo, e com cenário e figurinos de António Lagarto. Escrito em 1967, Sem Flores nem Coroas centra-se na história de uma família brâmane e católica de Goa (tal como o era a família de Orlando da Costa), no momento em que as tropas da União Indiana se preparam para, em 1961, desferir a primeira ferida de morte no chamado “Império Português”.
Ainda assim, mesmo com esse pano de fundo factual que Fernanda Lapa reduziu a referências que libertam o texto de um contexto demasiado específico — “Retirámos realmente qualquer tentação de Hollywood”, diz em relação a quaisquer veleidades de reconstituição histórica —, assiste-se ao texto de Orlando da Costa sobretudo como um mergulho num “núcleo familiar fechado, um casulo que existe e que é rompido pela intervenção que vem de fora”, descreve a encenadora. Essa presença desestabilizadora, forasteira, chega na figura de um filho adotivo (Pedro Russo), uma representação do “outro” que o pai de família (João Grosso) desconsidera e vê como inimigo. É esse pai que veremos depois a ser vergado pela doença, a definhar, como imagem de um Portugal salazarista. “Já li alguns textos que diziam que se trata de Salazar”, conta a encenadora. “Mas não acho que chegue tão longe, é antes alguém que pactuou com o salazarismo.”
Salazar — a sua voz, pelo menos — invade o espetáculo na gravação de um discurso a que Fernanda Lapa recorre. E faz o mesmo com o primeiro-ministro indiano Jawaharlal Nehru. Há um rádio em palco, para o qual o pai se vira, em desespero, tentando obter notícias do conflito entre as tropas da União Indiana e as defesas portuguesas. Porque apesar de optar por não colocar a História à frente do conflito familiar, dos segredos e das traições em que vive este pequeno núcleo, Fernanda Lapa não quer esquecer que Sem Flores nem Coroas se situa no “princípio do fim do império colonial português, de que a gente nova não faz ideia e mesmo os velhos já esqueceram um bocado”.
Escrito durante a ditadura portuguesa, Sem Flores nem Coroas foi, sem espanto, proibido pelos censores. E aborda um tema (a saída portuguesa) que, acredita Fernanda Lapa, continua a ser “sensível” entre os goeses. Foi também isso que percebeu nas conversas que manteve na Casa de Goa, durante o processo de preparação de um espetáculo que é, antes de mais, feito com “muita ternura e um sentimento de dívida” em relação a Orlando da Costa. A promessa, por fim, cumpre-se a partir desta sexta-feira.
por Gonçalo Frota in Público | 9 de janeiro de 2020
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público