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Durante dois dias, a circum-navegação faz-se música no São Luiz

Pela primeira vez, os espanhóis Música Antigua e os portugueses Os Músicos do Tejo atuam em Lisboa para comemorar os 500 anos da primeira volta ao mundo. É uma viagem musical, e simbólica: “As pessoas quando fazem música estão a ser coletivistas.”

Foto de Nuno Ferreira Santos Os músicos espanhóis e portugueses e o produtor Carlos Gomes_Nuno Ferreira Santos


Estas segunda e terça-feira, um par de espectáculos junta pela primeira vez em palco o grupo espanhol Música Antigua e o grupo português Os Músicos do Tejo para comemorar os 500 anos da primeira viagem de circum-navegação – e para interpretar o que Fernão de Magalhães e seus marinheiros poderão ter ouvido na época. É uma “viagem emocional” paralela à que deu a volta ao mundo, descreve o produtor português Carlos Gomes, uma alquimia de cancioneiros portugueses e cancioneiros espanhóis, conta o músico e diretor musical espanhol Eduardo Paniagua, e por todas essas razões um espetáculo simbólico. “São portugueses e espanhóis a fazerem esta harmonia musical”, reflete o cravista português Marcos Magalhães em vésperas da estreia no Teatro Municipal São Luiz.

Concerto Comemorativo dos 500 Anos da Primeira Viagem de Circum-navegação tem programação e direção de Eduardo Paniagua, que encontrou nesta encomenda da Embaixada de Espanha no âmbito das celebrações da primeira volta ao mundo a oportunidade de trabalhar com Marcos Magalhães, que dirige Os Músicos do Tejo — e que aqui também se ocupará do cravo, coadjuvado por Arthur Filemon e Marco Oliveira no canto. Já Paniagua, arquiteto e músico, é fundador do grupo Música Antigua, que dirigirá neste espetáculo, encarregando-se ainda de flautas, saltério e percussão ao lado de Cesar Carazo, no canto e viola, e de Luis Antonio Muñoz, no canto e viola da gamba.

Os seis músicos estão desde sexta-feira em residência artística no São Luiz, em cuja Sala Mário Viegas atuarão às 21h de segunda e terça-feira. Parte do programa Mostra Espanha 2019, que desde junho promove fora de portas o atual momento criativo espanhol, o concerto quer estabelecer este paralelo: um grupo de portugueses e espanhóis no mar, um grupo de portugueses e espanhóis em palco. Propõe uma “viagem emocional através da música, para compreender o que foi a aventura daqueles homens”, explica Carlos Gomes, arquiteto e produtor da Transiberia que há anos se enamorou pela música antiga.

O concerto terá mais do que o seu prato principal, a música antiga tocada com “instrumentos cópia dos antigos, e portanto historicamente informada”, nota Marcos Magalhães. A produtora Valise D’Images, que já trabalhou com grupos como os Mão Morta ou os Buraka Som Sistema, encarrega-se da imagem e da componente multimédia, enquanto um historiador, o professor catedrático Juan Marchena Fernandez, “vai participar no concerto como uma espécie de apresentador, [num registo] one man show”, remata Carlos Gomes.

Se estes elementos visam ajudar a contar esta história do ponto de vista contemporâneo, o cerne é a música antiga, coligida a partir dos cancioneiros hispânicos do final do século XV e início do século XVI, como se explica na apresentação do espetáculo. Eduardo Paniagua, cujos caminhos se tinham já cruzado com os de Carlos Gomes no concerto Al Mutamid, Rei Poeta do al-Andalus que Lisboa e Beja viram em 2014, detalha que temas emanarão do palco. Não sem esclarecer, naturalmente, que esta seleção musical é uma especulação, “porque não sabemos que obras exatamente” terão ouvido os marinheiros naqueles anos de 1519 até 1522, e até antes de embarcarem — na corte do rei espanhol ou quando estavam em busca de mecenas junto dos nobres e aristocratas, exemplifica Paniagua.

“Mas temos a segurança absoluta de que as peças que tocamos são as recolhidas nos cancioneiros aproximadamente até 1500, 1520, as obras que se cantavam naquele momento nas cortes espanhola e portuguesa. O que é interessante é que a fonte são dois cancioneiros espanhóis que têm canções portuguesas e também cancioneiros portugueses com textos em espanhol – são reinos muito próximos e culturalmente vizinhos”, sublinha o diretor musical do espetáculo ao PÚBLICO.

“Também introduzimos obras mais populares, cantos de marinheiros, cantos de pastores que os músicos da época enriqueceram, tornando polifónicos”, destaca Eduardo Paniagua. Aquilo que ouviriam nas tabernas, nas ruas e nas praças quando aportavam, e a que se juntam neste concerto temas religiosos, “orações dos marinheiros pedindo a Santa Maria ajuda para se salvarem durante a viagem”. A seleção musical, articulada com a narração de Marchena Fernandez, corresponde a “um discurso interior, um guião imaginário” construído pelos seis músicos, em torno de temas como “o risco da viagem, a emoção da despedida, as tempestades do mar, do vento — e também as lutas interiores dos marinheiros”.

O que sabemos da História desta expedição permite antever o desfecho do concerto em dois momentos: “Haverá uma terceira parte mais dramática e solene, primeiro quando morre [Fernão de] Magalhães nas Filipinas em [1521], e, depois, com a alegria da chegada, tendo à vista Portugal e o rei de Espanha”, remata Eduardo Paniagua. Seria Juan Sebastián Elcano (1476-1526) a levar a empresa a bom porto, em 1522, depois de a coroa espanhola o ter chamado a esta empreitada na sequência da morte do navegador português.

No início deste ano, as comemorações do quinto centenário da primeira volta ao mundo viram-se parcialmente ensombradas pela polémica diplomática e mediática em torno da importância relativa que Espanha e Portugal, Elcano e Fernão de Magalhães (1480-1521) tiveram neste feito histórico. Nesse contexto, Marcos Magalhães não tem dúvidas quanto ao simbolismo deste concerto. Foi da globalização iniciada pela primeira circum-navegação que resultou uma nova “visão do mundo como uma esfera que se conhece de todos os lados”, e com ela vieram mudanças culturais fundamentais, diz. E sublinha a troca de ideias saída da interação dos músicos das duas nacionalidades: “As pessoas quando fazem música estão a ser coletivistas, estão a ouvir o outro. É o terreno do contacto mais elevado entre as pessoas, mais idealista.” 


por Joana Amaral Cardoso, in Público | 15 de dezembro de 2019
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura e Jornal Público

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