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Clássicos em Cena estão de volta com a integral de Jorge Ferreira de Vasconcelos
As três comédias quinhentistas, Eufrosina, Ulysippo e Aulegrafia, vão ter leituras encenadas com 24 atores ao longo desta semana na Sá da Costa, em Lisboa, pelo Teatro Maizum.
O mundo transformou-se num lugar perigoso, absurdo e desconcertante, e as suas personagens respiram ambição, intriga e mentira.” Será isto o começo de um virulento artigo de opinião sobre o estado do mundo em 2019? Não. É a descrição de uma peça teatral escrita há… exatamente 500 anos. Trata-se da Comedia Aulegrafia, de Jorge Ferreira de Vasconcelos (1515/1524?-1585), que este ano deverá ter a sua primeira apresentação em palco nestes séculos. E nos Jerónimos, pelo Teatro Maizum, que tem vindo persistentemente a apostar no estudo e divulgação do teatro clássico português.
Mas antes, o Maizum promove esta semana uma “maratona” com leituras encenadas das três comédias de Ferreira de Vasconcelos. Já em 2008, na livraria Bulhosa, esta trilogia havia sido apresentada pelo grupo, em “leituras dramatizadas”, mas agora preenche integralmente a 4.ª edição dos Clássicos em Cena, que decorrerão na Livraria Sá da Costa, em Lisboa, nos dias 25 (Eufrosina), 27 (Ulysippo) e 29 (Aulegrafia), sempre às 19h, com uma sessão especial no dia 30, com as três juntas (às 17h, 18h30 e 20h).
Dois grandes golpes
A primeira edição destas leituras encenadas, em 2016 (na Casa da Achada), incluiu Os Vilhalpandos (Sá de Miranda), a Ulysippo (Jorge Ferreira de Vasconcelos) e a Comédia O Cioso (António Ferreira). A segunda, em 2017, já na Sá da Costa, apresentou o Auto Natural da Invenção (António Ribeiro Chiado), o Auto dos Sátiros (anónimo) e a Comédia d’El Rei Seleuco (Luís de Camões). E a terceira, em 2018, deu viva voz ao Auto dos Dois Irmãos (António Prestes), ao Auto de Florença (João de Escovar) e ao Auto de Dom Fernando (anónimo). Agora, a quarta celebra a trilogia de Jorge Ferreira de Vasconcelos, no ano exato em que a sua Comedia Aulegrafia (1519) faz 500 anos e depois do V centenário do seu nascimento ter sido assinalado em 2015 com um colóquio internacional, em maio desse ano, na Fundação Gulbenkian, e com uma exposição na Biblioteca Nacional, em Lisboa, intitulada Jorge Ferreira de Vasconcelos – Um Homem do Renascimento Português. Ora o catálogo desta exposição é da autoria de Silvina Pereira, atriz, investigadora, encenadora e diretora artística do Teatro Maizum, que não só estuda a vida e obra de Jorge Ferreira de Vasconcelos há um quarto de século como ainda em janeiro deste ano o recordou numa conferência na Sociedade de Geografia, Mundo, Corte e Cavalaria em Jorge Ferreira de Vasconcelos. A anunciada estreia, em palco, da Comedia Aulegrafia, em julho, nos Jerónimos, virá completar as encenações da trilogia, já que o Maizum estreara a Eufrosina em 1995 e a Ulysippo em 1998.
Mas o teatro clássico sofreu, em Portugal, dois grandes golpes, diz ao PÚBLICO Silvina Pereira. O primeiro ainda no século XVI: “Com a contra-reforma [a partir de 1545], rapidamente entraram no índex [uma longa lista de livros proibidos] quer o teatro português, quer a grande literatura, quer as grandes obras de ciência. Foi uma razia. Luiz Francisco Rebello dizia que Coimbra foi o berço e o túmulo do teatro português.”
O segundo foi já no século XIX: “Os românticos não apreciavam este teatro, e quer o Garrett quer o Herculano não mostravam grande apreço por ele. E esse preconceito veio até aos nossos dias.” Ainda recentemente, alguém recordava Gil Vicente como “rude e tosco”, mais não fazendo do que repetir o que Garrett dissera. “Embora Garrett o tenha recuperado, quando fez a peça Um Auto de Gil Vicente [estreada em Lisboa, em 1838], a partir daí ficou sempre Gil Vicente e os outros, como se não houvesse mais nada. Um gigante num deserto. Ora isso é falso, porque o século XVI respirava teatro, fazia-se teatro em todo o sítio.” Mas tudo se reduziu, por simplificação, a um nome. “É verdade que o grande modelo é o Gil Vicente, que ao longo de 30 anos escreveu 50 peças para a corte, em vários géneros, mas também havia teatro nos pátios, nas casas dos nobres, nos palácios, na rua. Quer o teatro clássico, do qual as grandes figuras são Sá de Miranda, António Ferreira e Jorge Ferreira de Vasconcelos (também o Diogo Teive), quer o auto peninsular de Gil Vicente e de uma série de autores de que temos vindo a falar.”
Um resgate, no século XX
É já no século XX que este teatro tem vindo a ser resgatado, com labor, por estudiosos e dramaturgistas, sobretudo estrangeiros, mas não tem sido fácil a sensibilização nacional para a importância de tal património. “Há nitidamente um divórcio muito grande, e absurdo, com o teatro clássico português”, diz Silvina. “Podemos ver um encenador português a referir Shakespeare, Racine, Molière, Lope de Vega, mas não o teatro clássico português.” Daí muitas destas peças nunca terem tido palco no nosso tempo.
No programa de Apoio Sustentado às Artes 2020-2021, o Maizum (activo desde 1981, levando à cena muitos autores, clássicos e contemporâneos) voltou a ter subsídio zero. O seu trabalho é mal visto? Ao contrário. A apreciação da DGArtes diz até que “o mérito da entidade existe, assim como uma progressão expansiva na área de trabalho, investigação, formação e divulgação que complementam e integram a atuação artística”, acrescentando que “não existe entre nós nenhum grupo ou nenhuma entidade” com tais características.
Sem empenho de entidades oficiais ou subsídios estatais, diz Silvina, “é preciso engenho e arte” para continuar. E é assim que o Maizum anuncia, além da estreia da Aulegrafia, também a Tragédia do Príncipe João, de Diogo de Teive, nos Jerónimos, em 2021.
“Na Aulegrafia assiste-se à morte do amor pela intriga no Paço, pela ganância. Já a Tragédia traduz a morte do jovem príncipe João, com 17 anos, quando toda a corte mente à jovem parturiente dizendo que o príncipe tinha de sair para os Jerónimos (para onde foi o corpo, à época) para ir rezar, e não por ter morrido. Para não criar complicações no parto. E ela assiste à saída do jovem príncipe, seu marido, sem saber que ele vai morto, no ataúde. É um texto belíssimo, comovente, e é um momento alto da tragédia portuguesa.”
por Nuno Pacheco in Público | 25 de novembro de 2019
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público