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Argentina Santos, a fadista da Parreirinha de Alfama que pisou palcos internacionais
Foi pelo fado que ficou conhecida, mas a artista sempre confessou gostar mais de cozinhar do que cantar. E foi precisamente através do papel de cozinheira que nasceu a sua carreira, na Parreirinha de Alfama, espaço ao qual a Argentina Santos deu o fado. Correu o mundo com a sua voz.
A fadista Argentina Santos morreu esta segunda-feira em Lisboa, aos 95 anos, disse à Lusa o músico Paulo Valentim, atual proprietário da casa de fados A Parreirinha de Alfama. Despediu-se dos palcos em abril de 2015, colocando fim a uma carreira iniciada "por mero acaso" na sua Parreirinha de Alfama, em Lisboa, durante a qual pisou palcos internacionais.
A intérprete de "Chico da Mouraria" foi homenageada no espetáculo "Gosto da Parreirinha", que foi a sua despedida oficial dos palcos, levado à cena no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
Gravou vários discos, protagonizado o espetáculo "Cabelo Branco é Saudade" (2005), de Ricardo Pais, com o qual atuou em vários palcos europeus, e participou no Festival de Edimburgo, numa das entrevistas à Lusa a fadista afirmou que gostava mais de cozinhar do que cantar. O investigador de fado Luís de Castro, que foi cliente "mais de 50 anos d'A Parreirinha", e amigo da fadista, realçou à Lusa a "excelente gastronomia portuguesa à qual ela dava sempre um toque especial".
Ao seu nome ficam associados fados como "Chico da Mouraria", "A Minha Pronúncia", "As Duas Santas", "Juras", "Chafariz d'El Rei", "Lisboa, Casta Princesa", "Passeio Fadista", "Praga", "História de Uma Velhinha", "Coração Não Batas Tanto" ou "As Minhas Horas".
O estilo interpretativo de Argentina Santos caracterizava-se "por uma expressividade intensa" que construía "através da ornamentação, da acentuação, da introdução de suspensões longas nas palavras-chave que [preenchia] com melismas cantados em pianíssimo, sobretudo no registo agudo", lê-se na "Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX" (2010).
Na ocasião, Carlos do Carmo, amigo de longa data da fadista, afirmou à Lusa: "Há um contraste no canto da Argentina Santos entre o pregão e a reza. Em dois, três versos existe um pregão que só é de Lisboa, e depois, em absoluto contraste logo a seguir, existe um recolhimento, uma contenção, que parece uma reza".
Luís de Castro afirmou, por seu turno, que o cantar de Argentina Santos era "um autêntico pregão de Lisboa", e realçou "os característicos pianinhos" como "uma mais-valia sua, suspensões em que, em vez de elevar a voz, baixa o tom mantendo a melodia e causando uma atmosfera emocional única". Fazendo notar o seu empenho empresarial, confidenciou: "a Argentina nunca tinha apenas um artista vedeta no seu elenco, mas sempre dois ou três, além dela própria".
E o estudioso de fado recordou ainda que a Parreirinha "foi uma rampa de lançamento de muitos artistas", e citou os nomes de António Mourão, Fernanda Maria, Maria da Fé e Maria Armanda.
"Além da grande fadista de referência, é uma enorme mulher que triunfou sem pisar ninguém", sublinhou por seu turno Carlos do Carmo.
A mulher que deu fado à Parreirinha
Nascida a 6 de fevereiro de 1924 no bairro lisboeta da Mouraria, foi na vizinha Alfama que Maria Argentina Pinto dos Santos, de seu nome completo, fez vida e carreira, nomeadamente à frente da casa de fados Parreirinha de Alfama, onde uma vez, na década de 1950, numa tertúlia, lhe pediram para cantar e entrou numa desgarrada por acaso. Uma história que lembrou em entrevista ao DN, em setembro do ano passado.
"Cantei por cantar", contava. "Não dava tempo. Nunca pensei vir a cantar", no meio de uma "vida de trabalho", que começaria aos "8,9 anos". "Fazia aquilo que me mandavam fazer, o que eu podia fazer. Lavar a loiça, arrumar uma casa, pôr as coisas nos seus lugares. Eu passava mal", recordava ao DN.
A Parreirinha de Alfama, onde Argentina Santos era cozinheira, oficialmente, não apresentava fados, mas aconteciam tertúlias, nomeadamente com a participação do fadista Filipe Pinto, e certa vez uns jornalistas fizeram referência aos bons petiscos que ali se serviam e ao fado se cantava. Esta referência obrigou a fadista a tornar a Parreirinha, que servia refeições aos fragateiros [homens que trabalhavam nas fragatas], um espaço de fado, que inaugurou com o fadista Alberto Costa (1898-1987).
A mãe de Carlos do Carmo, Lucília do Carmo, foi uma das muitas fadistas que atuou na Parreirinha de Alfama, assim como Berta Cardoso, Celeste Rodrigues, Alfredo Marceneiro, Mariana Silva, Lina Maria Alves e Beatriz da Conceição.
Até à década de 1990, a fadista circunscreveu as suas atuações, essencialmente, à sua casa de fados, "embora fosse a muitas matinés fadistas no Café Luso", referiu Luís de Castro.
Carreira homenageada
Uma exposição realizada no Museu do Fado, em fevereiro de 2010, tomou como título "Argentina Santos - Não sei se Canto se Rezo".
A sua estreia discográfica data de 1958, através do editor Manuel Simões (1917-2008), da etiqueta Estoril, o seu primeiro álbum saiu em 1978, "Chafariz d'El Rei" (Riso & Ritmo), o último álbum foi editado em 2002 pela CNM, de Nuno Rodrigues. Em 2009 participou no álbum de Filipa Cardoso, com quem gravou "Fado da Herança", e nesse ano, Argentina Santos sofreu um acidente vascular cerebral, o que a levou a afastar-se dos palcos.
O Museu do Fado escreveu que, ao confinar grande parte do seu percurso à Parreirinha de Alfama, Argentina Santos "fez também da sua casa uma autêntica oficina de fados, cenário de afetos e palco da cumplicidade criativa de poetas, músicos e fadistas".
Em 1994 pela mão do encenador Ricardo Pais com o espetáculo "Raízes e Paixões" começou a pisar outros palcos, como o do Teatro Nacional S. João, no Porto, Queen Elizabeth Hall, em Londres, ou o da Cité de la Musique, em Paris. Com Ricardo Pais, voltou a participar no espetáculo encenado de fado, "Cabelo Branco é Saudade" (2005).
Em 1995, Argentina Santos, com o fadista Carlos Zel (1950-2002) e o guitarrista Pedro Caldeira Cabral, participou no Festival de Edimburgo.
Em termos internacionais, Argentina Santos cantou no Brasil, em S. Luís do Maranhão, em 1995, a convite do músico Pedro Caldeira Cabral, e em S. Paulo, em 1999, na Casa de Portugal, com Carlos do Carmo, deslocou-se também à Grécia, França, Holanda, Reino Unido, Espanha e Itália, onde foi tornada patrona da Academia do Fado em Racanati, e foi homenageada em Ascona.
A criadora de "Vida Vivida" recebeu, em 2005, o Prémio Amália Carreira, e a sua casa de fados, nesse mesmo ano, foi distinguida com o troféu para Casas de Fado/Casa da Imprensa entregue na Grande Noite do Fado de Lisboa, no Teatro S. Luiz, onde no dia 02 de julho de 2010, numa homenagem recebeu a Medalha de Ouro da cidade de Lisboa.
O Museu do Fado homenageou a fadista em novembro de 1999, tendo na altura recebido uma medalha de louvor da Câmara de Lisboa, e a Associação Portuguesa dos Amigos do Fado distinguiu-a com um diploma de Sócia de Mérito.
Em 2013 a fadista foi condecorada pelo Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, com a comenda da Ordem do Infante.
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias