Notícias
Judiciária a braços com nova “epidemia” de roubos de azulejos
Depois de anos de acalmia, este ano já foram abertos pelo menos 30 processos por roubo de azulejos históricos na região de Lisboa. Só um vendedor da Feira da Ladra tinha na sua posse peças no valor de mais de 48 mil euros.
É um tipo de crime que estava em contracção mas que nos últimos tempos voltou em força: só este ano, a Directoria de Lisboa da Polícia Judiciária (PJ) abriu pelo menos 30 processos por roubo de azulejos em vários edifícios históricos do distrito. Depois de alguns anos de acalmia, a Brigada de Obras de Arte da PJ fala agora em “epidemia” para classificar esta nova vaga de furtos.
Quintas senhoriais, palacetes e outros edifícios antigos e históricos, privados e públicos, em Lisboa, Oeiras, Sintra, Estoril, Odivelas, Famões, Caneças ou Cascais, têm sido alvo destes furtos recentemente. A PJ segue o rasto dos larápios e sabe que estão organizados. Actuam divididos em dois grupos que procuram especialmente painéis dos séculos XVII e XVIII, mas também não se fazem rogados perante azulejos mais contemporâneos.
De acordo com fonte da PJ que se dedica à investigação deste tipo de crimes, um bom azulejo vale, no mínimo, 100 euros. Muitos são vendidos aos turistas na rua, nomeadamente na Feira da Ladra, onde não faltam antiguidades, e os de maior valor aparecem nos antiquários e por vezes em leilões. Também já têm aparecido azulejos furtados à venda em sites e redes sociais na Internet.
Em Lisboa, um só vendedor, que habitualmente marca presença na Feira da Ladra, tinha na sua posse cerca de 48,5 mil euros em azulejos portugueses. Entre os vários painéis encontrados numa das suas casas estavam quatro de um conjunto de 17 painéis furtados em 2001 no Palácio Belmonte, em Alfama, e cujo processo já tinha sido arquivado. Segundo dados da Brigada de Obras de Arte da PJ, só estes quatro painéis estavam avaliados em 23,5 mil euros. Estiveram desaparecidos 17 anos.
A investigação deste caso iniciou-se a 31 de Outubro de 2016, quando representantes de uma empresa privada apresentaram queixa na PJ pelo furto de um painel de 90 azulejos do século XVII, avaliado em 25 mil euros, de um prédio junto ao Campo Mártires da Pátria, em Lisboa, onde estavam a realizar obras. No âmbito dessa obra, e para preservar os azulejos, foram fotografados todos os painéis e assim que deram pela falta de um deles foi feita a queixa e enviadas as fotografias.
No decorrer da investigação, um dos inspectores deslocou-se à Feira da Ladra e apercebeu-se que um dos vendedores, bastante conhecido nesta área da venda de azulejos, tinha na sua posse um que se destacava por ser semelhante aos que tinham sido furtados no Campo Mártires da Pátria. Destacava-se até pelo preço. O vendedor estava a pedir por um único azulejo 400 euros. Questionado, disse que lhe tinha sido vendido por um cidadão de Leste e que lamentava não ter o painel completo, pois jamais conseguiria vender o exemplar único que tinha na sua posse e o guardaria para a sua colecção privada.
A investigação prosseguiu até que foi encontrada uma fotografia do painel completo num antiquário de Lisboa. Para espanto dos inspectores, o antiquário identificou o vendedor da Feira da Ladra como o homem que tinha o painel para vender.
Numa das casas deste homem, em Oeiras, os inspectores viriam então a descobrir não só o painel furtado em 2016, como os do Palácio Belmonte, desaparecidos desde 2001. Além destes, e de acordo com a PJ, foi possível recuperar ainda azulejos que tinham sido furtados do edifício do Banco de Portugal, na Baixa de Lisboa, e que tinham desaparecido depois de terem sido encaixotados por causa de umas obras. O vendedor da Feira da Ladra acabou acusado e foi a julgamento, mas não houve condenação porque os queixosos decidiram entretanto fazer um acordo.
30 processos só este ano
Este é apenas um exemplo deste tipo de crime e do circuito que a mercadoria faz até ser vendida. Segundo fonte da Brigada de Obras de Arte da Polícia Judiciária, “infelizmente, e depois de uma época ligeiramente mais calma”, o roubo de azulejos “voltou a aumentar” como uma “epidemia”.
O mesmo é confirmado pelo Projecto SOS Azulejo do Museu de Polícia Judiciária, que nasceu em 2007 da necessidade de combater a grave delapidação do património azulejar português que já então se verificava. Se, em 2017, o SOS Azulejo dava conta que os furtos tinham diminuído em 80%, agora a realidade é outra.
Entre 17 de Janeiro de 2018 e 22 de Julho de 2019, a PJ abriu 40 novos processos de investigação a furtos de azulejos – a maior parte, 30, são já deste ano. “No Verão chegámos às 11 queixas por mês”, refere fonte da PJ, sublinhando que este fenómeno está a voltar em força para preocupação das autoridades.
Têm sido recuperados muitos azulejos no âmbito das várias investigações abertas, caso dos 130 azulejos do século XVII que a PJ recentemente recuperou e que tinham sido roubados nos últimos dias de 2018 de uma galeria do Mosteiro de Odivelas. No âmbito deste processo já foi detido um indivíduo, mas a investigação prossegue.
Os inspectores da Brigada de Obras de Arte levam a cabo fiscalizações frequentes aos antiquários e outros locais onde se comercializam antiguidades. Ao longo dos anos foi também estabelecida alguma colaboração com vendedores, alguns dos quais comunicam às autoridades qualquer situação suspeita que possa eventualmente ter contornos ilegais.
“O que está em causa não é apenas o furto dos azulejos, mas também o rasto de destruição nos locais que deixam para trás”, sublinha a mesma fonte da PJ, ligada à investigação deste tipo de crimes.
Foi o que aconteceu na Casa da Pesca, em Oeiras, um conjunto arquitectónico do século XVIII votado ao abandono há dezenas de anos. Em Maio deste ano, foi a Câmara de Oeiras a denunciar o roubo de vários painéis de azulejos deste local.
por Sónia Trigueirão, in Público | 11 de novembro de 2019
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público