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Ver "A Rosa do Adro" como se fosse há cem anos
Produção da Invicta Film realizada por Georges Pallu é exibida com a música original composta por Armando Leça. Esta quinta-feira no Porto e sábado em Lisboa.
No dia 6 de julho de 1919, antestreava-se no Teatro Sá da Bandeira, no Porto, o filme A Rosa do Adro, realizado pelo francês Georges Pallu (1869-1948), a partir do romance homónimo de Manuel Maria Rodrigues. Interpretado por Maria de Oliveira, Erico Braga e Carlos Santos, o filme contava a história de um triângulo amoroso, situada na região de Entre-o-Douro-e-Minho, sobre a rendição de uma jovem camponesa ao apelo da cidade por via da relação com um seu conterrâneo estudante de medicina no Porto.
Tratava-se da primeira verdadeira longa-metragem (80 minutos, equivalentes a 2000 metros de película) de ficção da Invicta Film, a produtora portuense que queria colocar-se a par da Europa no que à nascente indústria do cinema dizia respeito.
Antes, e desde que o realizador francês chegara ao Porto, no ano anterior, contratado à já famosa casa Pathé, tinha sido realizado o mais curto As Aventuras de Frei Bonifácio (1918). Mas seria com A Rosa do Adro que os produtores da Invicta verdadeiramente explicavam ao que vinham: levar ao grande ecrã histórias portuguesas, filmadas com actores e paisagens do país, também para mostrar lá fora “a ignorada alma portuguesa”, como notou o historiador de cinema e fundador da Cinemateca Portuguesa, M. Félix Ribeiro. Que este programa fosse dirigido por uma equipa técnica maioritariamente francesa, encabeçada por Georges Pallu — que viria a realizar o maior número de filmes que a Invicta produziria até 1924 —, surgia como uma inevitabilidade.
Estávamos então no tempo do cinema mudo, mas os filmes eram exibidos com acompanhamento musical ao vivo. E, para A Rosa do Adro, a música foi encomendada a Armando Leça (1891-1977), um compositor, etnomusicólogo e “folclorista” que haveria depois também de compor as partituras para duas outras produções da Invicta, Os Fidalgos da Casa Mourisca (1920) e Amor de Perdição (1921), ambos igualmente realizados por Pallu.
O centenário da estreia de A Rosa do Adro (história que, em 1938, teria um remake, realizado por Chianca de Garcia) é agora o pretexto para a iniciativa de uma equipa do Instituto de Etnomusicologia (Inet-md) da Universidade Nova de Lisboa, que vai reconstituir, na medida do possível, a sessão de antestreia do filme de Georges Pallu, com um sexteto de solistas da Orquestra Metropolitana de Lisboa a interpretar a partitura de Armando Leça. As sessões realizam-se esta quinta-feira no Porto (Casa das Artes, às 21h30), e sábado em Lisboa (Cinemateca, à mesma hora).
Rapsódia de música popular
A partitura de Armando Leça foi descoberta no arquivo da RDP, numa cópia realizada nesse mesmo ano de 1919 pelo músico da banda da GNR José Gomes da Silva.
Manuel Deniz Silva, que com Bárbara Carvalho — ambos da equipa do Inet-md — trabalhou na transcrição e revisão desta peça, explica ao PÚBLICO que se trata de “uma rapsódia sobre temas do Douro Litoral, dividida em cinco partes, e que pode ser tocada autonomamente em relação ao filme para que foi composta”. Nesse sentido, é de algum modo um trabalho experimental do compositor, que, para os filmes que musicou logo a seguir, Os Fidalgos da Casa Mourisca e Amor de Perdição, “estabeleceu já uma relação forte com a narrativa e com a sucessão das imagens e cenas, com a preocupação da sincronia”.
Numa parceria institucional com a Cinemateca Portuguesa e a Orquestra Metropolitana de Lisboa, a mesma equipa do Inet-md vai também musicar estes dois novos filmes de Georges Pallu na passagem do centenário das suas estreias, respetivamente em 2020 e 2021. Além dos cine-concertos, ainda a agendar, esse trabalho será depois editado em DVD, à imagem do que já aconteceu com outra produção da Invicta Film, Os Lobos (1923), de Rino Lupo, com a música composta por António Tomás Lima.
Manuel Deniz Silva realça, de resto — e ao contrário do que se possa pensar —, a importância que a música sempre teve no cinema no tempo do mudo. “Se, na passagem para a década de 1920, o cinema se torna uma arte narrativa, e a música desempenha aí também um papel importante” — nota o musicólogo e especialista em música e cinema —, a verdade é que já na década anterior o acompanhamento musical das sessões de cinema era uma prática regular. E se, na maior parte das ocasiões, esse acompanhamento era feito só ao piano, em muitas outras os exibidores e compositores apostaram em formações orquestrais, de menor ou maior dimensão.
Foi isso que aconteceu com A Rosa do Adro. E uma das curiosidades das sessões que agora vão reconstituir a estreia do filme original será precisamente ver um sexteto de cordas e piano a interpretar ao vivo uma obra já secular, também “com a dimensão performativa que um concerto deste género sempre assume”, diz Deniz Silva.
por Sérgio C. Andrade in Público | 24 de outubro de 2019
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público