"É de Cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos que vos quero falar"

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A antologia de João Habitualmente na coleção elogio da sombra

Das noites com autores e diseurs na cave do Pinguim às Quintas de Leitura no Rivoli, há quase um quarto de século que o nome João Habitualmente é um sinonimo de poesia na cena cultural da cidade do Porto. 


Autor prolífico, com grande parte da obra poética completamente esgotada e indisponível ao grande público, 
Um dia tudo isto será meu, uma cuidada antologia publicada na Porto Editora, na coleção elogio da sombra, chega agora às livrarias para colmatar essa falha.

Há na poesia de João Habitualmente uma impressão de ironizar tudo em favor de certa nostalgia, afirma o coordenador da coleção, Valter Hugo Mãe. Numa contida desgraça que tende para um efeito cómico, muitas vezes numa atitude de desfaçatez em relação ao que o rodeia, protesta, insulta e ama brilhantemente. (…) Fere os poemas na sua rama mais lírica, por vezes meio romântica, a prometer desfechos bem comportados que nem sempre se consumam.

Um dia tudo isto será meu, a nova morada da poesia de João Habitualmente, foi organizado e também prefaciado por Isaque Ferreira, um dos mais marcantes leitores de poesia e voz oficiosa deste poeta, pseudónimo de Luís Fernandes, psicólogo, professor universitário e uma das figuras fundadoras da área de estudos em comportamentos desviantes no nosso país.

Sobre o livro
Há na poesia de João Habitualmente uma impressão de ironizar tudo em favor de certa nostalgia. Não é imediato. Vamo-nos inteirando de seu espírito lentamente, disfarçado como está numa contida desgraça também cómica.

Pode acentuar-se nos poemas em que as moças, a palha e os campos seguem um imaginário algo antigo. Sabemos das aldeias como do lugar onde a verdade morreu.

O jeito de Habitualmente é muito específico. Produz um efeito quase mal-educado, um impropério ou modo de se marimbar, que fere os poemas na sua rama mais lírica, por vezes meio romântica, a prometer desfechos bem comportados que nem sempre se consumam.

Temos constantemente a sensação de o poema ser devorado pelo golpe do que não se domina, uma inclinação para que se diga de modo armado, perigando a condição do poeta e denunciando a desfaçatez do mundo. Todas as figuras são dignas de serem, a um tempo, maravilhosas e terríveis. Todas podem tornar-se risíveis.

É talvez o traço mais constante da poesia de João Habitualmente, a assunção da falha. Algo que poderia ser imaculado mas que, por azar da extrema realidade, se vulnerabiliza. Como aquela história da educação. Tem tudo para ser irrepreensível, de uma cultura e elegâncias inestimáveis mas, aqui e ali, não contém a limpidez do protesto. A limpidez da catarse. Fá-lo brilhantemente. Protesta, insulta e ama brilhantemente.

Valter Hugo Mãe

O SÍTIO INVERSO

Um sítio
onde o mar corre prós rios
onde a luz que há de dia
é de noite que alumia

e o verão é a estação dos frios

Um sítio
onde as coisas que há de pé
estão sentadas
e onde o vento ao soprar
deixa as coisas mais paradas

Um sítio branco
um sítio tal que o deserto aqui
é floresta tropical
e o lume é gelo
e a montanha vale

Um sítio roxo
um sítio que é o inverso dos lugares
aqui o são é coxo
e o cego rasga os mares

Inventar um sítio assim:
fazê-lo de tão sábios traços
que ao supores fugir de mim
me venhas cair nos braços

Sobre o autor
João Habitualmente
Nasceu no Porto em 1961 e vive em Gaia. Publicou os primeiros textos na revista Pé-de-Cabra em 1984, onde era Célio Lopes na prosa e João Habitualmente na poesia. Com o fim da revista em 1992 desaparecia também o Célio Lopes. Em 1994 surgem os dois primeiros livros de poesia, Os sons parados Agradecemos (reunidos no mesmo volume) e o último em 2016, Poemas físicos da frente para a retaguarda na curva interior da estrada. Pelo meio aparecem Os animais antigos (2006), De minha máquina com teu corpo (2010) e Poemas em peças (2014). Da participação em obras coletivas destacam-se Diga 33 – os poetas das Quintas de Leitura (2008), Antologia da cave – 25 anos de poesia no Pinguim café (2013) e As vozes do silêncio (2017).

O seu percurso mostra no entanto desobediência aos géneros literários, recusando a fidelidade a algum deles. É assim que publica conto (Os pulsos fistréticos – contos maléficos, 2016), microficção (Notícias do pensamento desconexo, 2003 e Mais notícias do pensamento desconexo, 2014), diário (Coisas do arco da ovelha – pequeno tratado do banal familiar, 2014), cadernos de viagem (Pelo Rio abaixo – crónica duma cidade insegura, 2001) e crónica jornalística (Escrita perecível, 2007). Estes dois últimos têm a assinatura de Luís Fernandes, mais próximos que estão da atividade profissional do autor enquanto psicólogo e especialista do comportamento desviante, área que ajudou a fundar em Portugal, e enquanto cronista de imprensa (O Comércio do Porto no final dos anos 90 e O Público entre 2002 e 2006).
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