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Filme de Gonçalo Waddington surpreende em San Sebastián
Uma câmara no corpo de um rapaz abusado. Patrick, de Gonçalo Waddington, perturba de forma insidiosa. Outra obra portuguesa a impor-se no circuito dos festivais depois de Vitalina Varela e A Herdade.
Num festival marcado por uma competição mais do que competente, chega hoje finamente Patrick, de Gonçalo Waddington, ontem já exibido numa sessão para a imprensa. E o filme português cai que nem estrondo em San Sebastián. É talvez a melhor estreia dos últimos anos de um cineasta português.
Cinema direto e com uma carga de inquietação que é rara. A história de Patrick, um rapaz de 20 anos detido pela polícia francesa em Paris, que é afinal Mário, raptado na zona da Sertã quando tinha 8 anos e submetido a uma existência de exploração de pedofilia. O pesadelo das crianças que desaparecem e que são integradas em redes de abusos sexuais. Waddington filma precisamente o trauma na primeira pessoa, fazendo um estudo de identidade de um rapaz que teve a sua infância destruída. 12 anos depois, percebe que tem uma família portuguesa que nunca o esqueceu mas que talvez não saiba lidar com o seu passado.
Segundo o ator, agora realizador, Gonçalo Waddington, a ideia para este filme vem de muito longe, quando soube do caso Rui Pedro e de uma imagem que viu em Espanha de uma jovem prostituta raptada. Mas em vez de relatar ou ilustrar um caso real, a proposta é irromper por uma aproximação perene ao universo do trauma. O rapaz "interrompido" desta história de ficção é personagem de um imaginário que nos coloca sem pantufas no furacão do trauma.
Waddington filma este dramalhão sem pontas de pieguice nem vícios habituais de "vitimização". O jovem Patrick, interpretado com precisão pelo luso francês Hugo Fernandes, é um corpo de cinema. Alguém preso a uma terra de limbo de ódio e fantasia. E a fotografia belíssima de Vasco Viana (um dos maiores diretores de fotografia da Europa), bem como a música perturbante de Bruno Pernadas, estão para além da ordem do sensorial.
A paisagem rural portuguesa num verão de todas as luzes indicia uma possibilidade de esperança, mas o inferno de quem foi submetido ao maior dos horrores é material negro para carpir o pulso do espetador. Sai-se da sala de cinema de rastos perante a miséria humana, por muito que a beleza faça também parte da equação. Patrick é bem capaz de ser um dos maiores acontecimentos do cinema português dos últimos tempos e um manual de amor quebrado como nunca se viu. Trata-se realmente do maior choque deste festival até ao momento.
Além de Gonçalo Waddington e do seu protagonista, a sessão de gala deste filme contará também com a presença das atrizes Carla Maciel, Teresa Sobral e Alba Baptista, esta última a caminho de uma exposição internacional fortíssima após ter rodado Warrior Nun para Netflix. Patrick tem muitas possibilidades de sábado poder figurar no palmarés do júri presidido por Neil Jordan, cineasta irlandês. Em Portugal só chega para o ano.
Outros filmes e San Sebastián
Antes de Patrick, a sala do Kursall delirou e riu com Thalasso, de Guillaume Nicloux, sequela de O Rapto de Michel Houellebecq, de novo com Houellebecq a fazer de Houellebecq mas com Gérard Depardieu (que faz dele próprio) num spa da Normandia. O resultado é hilariante, uma espécie de cruzamento snob de Bucha & Estica com Mr. Bean, tendo ainda uma surpresa com Stallone (interpretado por um sósia) a entrar na festa.
Mas o filme mais falado por aqui é Adults in The Room, de Costa-Gravas, mega-produção que adapta o livro homónimo de Yannis Varoufakis e que conta detalhadamente as reuniões do então ministro grego com os todos-poderosos da Europa. O que poderia ser um filme panfletário esquerdista aborrecido é um exaltante espetáculo cético de um teatro de poder que mais parece um circo shakespeariano. Em San Sebastían há muita gente já a ter pesadelos anti-capitalistas com a cadeira de rodas de Wolfgang Schauble. Tsipras, Angela Merkel e Christine Lagarde ficam péssimos na fotografia...
por Rui Pedro Tendinha, em San Sebastián in Diário de Notícias | 25 de setembro de 2019
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Diário de Notícias