Quando, em 2004, coordenei em Estrasburgo, no Conselho da Europa, a redação da Convenção sobre o valor do Património Cultural, que seria assinada em Faro, o nosso grupo foi questionado sobre a identidade da Ponte de Mostar, mandada construir por Solimão, o Magnífico (1494-1566) e concluída em 1567 no rio Neretva, destruída em novembro de 1993 na guerra da Bósnia e reconstruída onze anos depois. A resposta foi a de que se tratava de um património comum (que a UNESCO classificou). Estava em causa uma ligação entre pessoas e culturas, a coexistência de diferenças, o diálogo vivo entre oriente e ocidente, a lembrança dos dois impérios romanos, a paz religiosa. Lembro isto, uma vez que não estamos a salvo da barbárie, quando tanto se fala de muros a substituir fronteiras e de supostas superioridades identitárias. Só a democracia e a solidariedade voluntária podem prevenir a tragédia.
“As instituições apenas são o que os seus atores realizam” – tem-no dito Marcel Gauchet, acrescentando que teme hoje por uma anomia democrática, se não houver consciência de que a capacidade para resistir à ilusão do poder depende da sabedoria dos responsáveis políticos. Impõe-se, assim, a capacidade de ouvir, de decidir e de partilhar decisões fundamentais. Para tanto, há que assegurar uma real mediação entre valores e interesses, de modo a que haja confiança por parte dos cidadãos e uma legitimidade sólida e eficiente.
O Estado-nação continua a ter um lugar próprio, mas deixou de ter exclusividade na administração da coisa pública. Contudo, não pode ser esquecido, sob pena de renascerem fantasmas antigos do nacionalismo radical. A descentralização e a desconcentração de poderes, que aproximem os cidadãos da coisa pública, não podem confundir-se com fragmentação social e perda de coesão. O princípio da subsidiariedade tem de ser respeitado e salvaguardado para resolver os problemas locais junto das pessoas e o que é supranacional (como o meio ambiente, a defesa e a segurança) acima dos egoísmos locais ou nacionais. A União Europeia e os espaços supranacionais não podem ser vistos como abstrações ou como estruturas burocráticas, pelo que a democracia apenas poderá desenvolver-se local e globalmente. A ideia de Superestado é indesejável e urge articular as legitimidades dos Estados e dos cidadãos. Pensar global e decidir local obrigam a um equilíbrio permanente, a um sintonizar fino, para que os interesses vitais comuns se liguem aos interesses vitais pessoais e comunitários.
O “Brexit” tem-nos ensinado duramente que a democracia não pode confundir-se com maioria aritmética, qualquer que ela seja. Como os suíços têm demonstrado, ao longo dos séculos, os referendos servem para resolver problemas concretos, mas não para definir um futuro constitucional estável. Não é repetindo referendos que os problemas se solucionam, quando se torna necessário encontrar compromissos de cidadania e mediações permanentes. Eis por que, para lidarmos com os ímpetos de Boris Johnson, devemos usar o bom senso e a melhor capacidade de encontrar soluções estáveis e inteligentes. A rigidez de uns só alimenta a cegueira de outros.
A crise financeira de 2008 ainda não foi totalmente entendida. Precisamos de economia humana, de sobriedade, de assumir que não podemos gastar mais do que podemos nem menos do que devemos e que a sustentabilidade obriga a respeitar a regra de ouro das Finanças Públicas, as dívidas só devem ser contraídas para realizar investimentos reprodutivos. Dinheiro sobre os problemas só os agrava. Poupança das famílias, planeamento estratégico e defesa do meio ambiente e da qualidade de vida são urgentes. Eis por que razão temos de assumir a prioridade da cultura, da educação e da ciência. Precisamos de valorizar as pessoas e as instituições, com exigência, trabalho e respeito mútuo. Quando Calouste Gulbenkian dizia a seu neto que era necessário cultivar a necessidade de se ser cada vez melhor, buscando o “very best” dava a tónica essencial. A ilusão da pós-verdade chama-se mentira. O medo do outro e do diferente só se supera com partilha de responsabilidades e melhor democracia. É de economia ciente da importância da cultura como criação que falamos.
por Guilherme d’Oliveira Martins in Jornal Público