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Guimarães tem um gangue que preserva a memória e o território através do teatro
Criado há dois anos, o Gangue de Guimarães conta com 76 artistas inscritos. O projeto, que já deu origem a várias performances, quer ser um instrumento para afirmar a cidade como um centro de criação artística, com a sua própria massa crítica, e não apenas como local de passagem para espetáculos vindos de fora.
Quando assumiu a direção artística do Teatro Oficina, em setembro de 2016, João Pedro Vaz decidiu que não seria apenas o encenador titular da companhia. Interessava-lhe também “olhar o território” e ajudar a tornar Guimarães numa cidade que, além de dispor de uma programação cultural que abrange “o melhor que se faz no país e no mundo”, também “presta atenção ao que se faz mais perto”.
Meses depois de ter encenado, no início de 2017, Teatro da Alma, festejando os 150 anos do nascimento de Raul Brandão, escritor que viveu no concelho a maior parte da sua vida, João Pedro Vaz apresentava publicamente o Gangue de Guimarães, uma espécie de mapa em que qualquer artista com ligação à cidade pode estar inscrito.
Com 76 pessoas envolvidas – atores e encenadores, na sua maioria, mas também coreógrafos e músicos, por exemplo –, o projeto originou algumas das criações levadas a cabo na cidade desde Setembro de 2018, quando se estreou Do Avesso, uma visita performativa ao Centro Cultural Vila Flor que voltou a ser apresentada a 8 de junho, integrando a 32.ª edição dos Festivais Gil Vicente. Todas as propostas do Gangue de Guimarães, explica ao PÚBLICO João Pedro Vaz, se alimentam das memórias produzidas pelo Teatro Oficina desde 1984, ano da sua fundação.
Mas o Gangue não olha somente para o passado da companhia de teatro. Os gangsters que o compõem são também uma porta que se abre para o futuro. “A partir de 2020, tudo o que o Teatro Oficina vai fazer passará por artistas do Gangue”, adianta o diretor artístico da companhia e também da cooperativa Oficina. “Isso é revelador também da atividade que o grupo tem.”
No âmbito do denominado Plano de Apoio à Criação Territorial (PACT), 11 projetos do Gangue serão contemplados com bolsas até 2021. Quatro deles estão a cargo da encenadora e dramaturga Manuela Ferreira: Jantar de Turma, Luz, Ekphrasis e (In)comum.
Apesar de estar no teatro há 22 anos, as suas criações mais recentes surgem da história oral, da memória e da recolha de testemunhos. “Interessa-me cruzar o teatro com outras linguagens”, diz a artista ao PÚBLICO. “O meu trabalho muito raramente tem como ponto de partida um texto escrito”.
Manuela Ferreira viu o Gangue como uma oportunidade para trabalhar esse apego à memória e à recolha de testemunhos na cidade onde vive há 13 anos. Apesar de o teatro ser uma “arte coletiva por excelência”, o projeto tem-lhe dado a oportunidade de “pensar em conjunto com mais artistas, com metodologias de trabalho diferentes”. Além disso, é um passo para Guimarães se afirmar cada vez como “cidade de criação, com a sua própria comunidade artística”. “Até hoje, tem havido mais uma lógica de acolhimento de programação cultural”, observa.
Coube precisamente à encenadora criar Do Avesso, a primeira performance com a chancela do Gangue. A obra deu ao público a oportunidade de visitar espaços aos quais nunca tem acesso num espetáculo, e foi escrita a partir de testemunhos de funcionários da contabilidade, da limpeza, da segurança, afirma. “Também serve para desmontar a ideia de que estes espaços só pertencem aos artistas. Não é verdade. Quem faz e mantém estes lugares são as pessoas que aqui trabalham. Os artistas são visitantes”, argumenta.
Outra das criações de Manuela Ferreira no âmbito do Gangue de Guimarães, Arquivo Público, também surgiu das experiências em torno do Teatro Oficina. Mais concretamente das memórias dos espectadores que têm acompanhado as produções da companhia nos últimos 25 anos. “O que muda aqui é o grupo de entrevistados”, diz, que “passa a ser a comunidade”.
Estreada a 30 de março, no âmbito da segunda bolsa do Gangue, a obra foi interpretada por Carlos Correia e Luísa Maria Oliveira. “O espetáculo foi a celebração da própria memória do Teatro Oficina”, recorda ao PÚBLICO a atriz natural da Guarda, e ligada à Guimarães por via de licenciatura em Teatro na Universidade do Minho, que concluiu em 2016.
Representar à mesa
O leque de criações previstas até 2021 inclui ainda quatro propostas de Tânia Dinis, criadora e atriz que participou noutra das propostas do Gangue, Linha de montagem, em março, duas propostas de Gil Mac e uma de Rita Morais, atriz e criadora que regressou a Guimarães graças a este projeto, depois de ter trabalhado em Lisboa com o Teatro Praga, por exemplo. A também bailarina tem a seu cargo Arquivo presente, um projeto que tem como ponto de partida jantares performativos com outros artistas e como linha de meta um “espetáculo de teatro muito aproximado aos conteúdos recolhidos nesses jantares”.
O primeiro realizou-se no sábado, com dez artistas. Essas refeições partilhadas, explica Rita Morais, são uma forma de valorizar os espaços informais onde as pessoas se relacionam, também importantes na vida de um artista. “É difícil as pessoas trabalharem juntas se não se cruzarem, se não conviverem”, defende. “O jantar é o primeiro passo para eu depois transmitir a ideia do artista na relação com outros artistas, com a cidade e com o mundo.”
As criações do Gangue, acrescenta, não têm estar literalmente associadas a Guimarães, mas o espaço onde se faz importa e o que ali se cria ajuda a “validar a cidade”. “Se estivéssemos em Coimbra, por exemplo, não desenvolvíamos os projetos da mesma forma”, reitera. “É preciso viver a cidade, mesmo que seja uma coisa abstrata de acabar um ensaio e ir beber um copo no fim.”
por Tiago Mendes Dias in Público | 17 de junho de 2019
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público