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Agustina Bessa-Luís (1922-2019)
O Centro Nacional de Cultura perde com o falecimento de Agustina uma das suas maiores referências.
Sócia do CNC é de há muito uma amiga muito devotada, que nunca esqueceremos.
É a Cultura Portuguesa que perde alguém de quem António José Saraiva disse: Eu considero-a com Fernando Pessoa um dos dois escritores verdadeiramente geniais que Portugal produziu no século XX (…). Para mim Agustina é o maior escritor em prosa de toda a literatura portuguesa».
O Centro Nacional de Cultura apresenta à família sentidas condolências.
«A sua escrita intensa e laboriosamente construída como uma renda de bilros – procura dar-nos um retrato fiel de uma grande complexidade escondida por trás de aparente placidez. E assim o português «troca-se em homem sensato quando esperam dele loucuras». O saudosismo torna-se, deste modo, contraditório – «apontem-se glórias a decidir, optará pelo papel dos que não foram célebres nem lutadores; reservem-lhe alianças poderosas, sentirá necessidade de se distrair delas». O português é contraditório por natureza. E assim Agustina define-o: «Hábil, certo, elementar, terrível, é este recriar das brumas, iludindo a agressão, esperando sem desejar, tendo esperança sem planos, coragem sem abismos, causa sem ordem, influência sem poder, alma sem cruz. Renasce já em cinzas, mas renasce sempre». Identificamo-nos com este retrato? O certo é que é este o tecido humano, a matéria-prima da romancista de «A Sibila»… E a ilustração é dada, neste significativo texto, por uma carta de Camilo Castelo Branco, sombra sempre tão presente na reflexão agustiniana. Aí o romancista é apresentado como português paradigmático – dizendo nessa missiva que vai inscrever-se em Teologia na Universidade de Coimbra, mas pondo-se em posição para sustentar uma polémica. «Nas suas palavras anda um voo de vespas, da mistura com aves que delas se nutrem». É o gosto da contradição que se manifesta. Se virmos bem em Agustina também encontramos essa permanente tensão entre o desejo e a resistência, entre o prazer e a repulsa. E fala Camilo de «tristes convicções», de que «fica proveito descontente» – e são tristes porque se «limitam a julgar, mais do que a crer». São ecos quase autobiográficos em que os romancistas se encontram. As águias voam baixo e por isso sobrevivem. Mas a audácia exige mais. É o instinto que sempre prevalece. E as grandes gestas geram grandes culpas, com consequente desejo de reconstruir o passado. «O nosso saudosismo não é amor do passado, é só consentimento da sua força. E no consentimento o aplacamos». Compreende-se a ideia de renascimento, como desejo e lembrança, decorrentes das contradições, de que o universo romanesco da escritora se alimenta. E sobre Camilo (ou, em boa verdade, sobre o romance português) diz, num ensaio em «O Tempo e o Modo» (1964), sobre uma experiência partilhada com José Régio, algo que tem a ver com a proximidade que Agustina sente do bruxo de Seide: «Dos seus livros, alguns há que sempre me causam admiração; a frescura da sua prosa é inimitável, o seu humor, como uma rajada fulgurante traz consigo, porém, aquela reticência nostálgica que um português de boa lei sempre faz acompanhar, quer dos seus juízos graves, quer das confissões líricas. (…) A ironia e a versatilidade, o prazer iconoclasta logo redimido por uma afabilidade pelos humilhados, vão direitos a certa culpabilidade congénita no português». Mais do que ideias, do que se trata é de entender o género humano e de descobrir nele todas as fascinantes contradições que nos permitem compreender a vida como um drama, mas sempre cheia de uma estranha ironia. Um dia apontaram a Agustina algumas aparentes contradições que se apresentam nas suas obras. Prontamente respondeu: E a vida não está cheia de incoerências? O interlocutor ficou sem palavras… Em suma, lembremo-nos apenas do que Agustina disse da Cultura (e não das honras e reputações): «O fenómeno cultural parte da renúncia aos “caminhos bifurcados que se dirigem para norte ou para sul”, como dizia um letrado chinês, o seu mérito está em não ser interrogável de maneira vã. A cultura só existe quando um povo a resumiu num traço de ódio ou de humor». Nestes ensaios e artigos é a fecunda ficcionista que se exprime e manifesta – e nela a criatividade vai ao encontro da humanidade e da sua inesperada complexidade. O génio de Agustina está exatamente nessa capacidade de ir ao âmago da alma humana».
“Agustina Bessa-Luís – Nasci adulta e morrerei criança”
O documentário onde Agustina Bessa-Luís fala da sua infância, das suas memórias, do “exílio” no Douro, das aventuras da sua juventude, do início da longa carreira como escritora e do amadurecimento da sua experiência. João Bénard da Costa, Manoel de Oliveira, Eduardo Prado Coelho, Inês Pedrosa, Pedro Mexia, Alberto Vaz da Silva, Mónica Baldaque e Francisco Cunha Leão falam da sua relação com a escritora.
Morreu Agustina Bessa-Luís, a escritora que marcou a nossa literatura
O anúncio da morte da escritora Agustina Bessa-Luís não surpreendeu pois os últimos anos da sua vida foram vividos em suspenso da realidade devido à doença que a afetou.
A primeira palavra que vem à cabeça quando se recorda Agustina Bessa-Luís é "escritora". Depois, é impossível não se pensar em "Porto". A seguir "Sibila", o seu terceiro livro, no qual a protagonista tem o dom de influenciar a vontade dos que a cercam. Quase que se poderia dizer desta capacidade da personagem que se assemelha à da própria escritora, já que a ninguém passava despercebida tal era o modo como a sua personalidade se impunha em qualquer espaço.
Agustina Bessa-Luís morre aos 96 anos, a meia centena de quilómetros da Vila Meã que a viu nascer a 15 de outubro de 1922, depois de ter assistido e participado em muitos acontecimentos das últimas décadas da sociedade portuguesa. Tal como acontecia no romance Sibila, onde ao narrar grande parte de um século da história do país, 1850 a 1950, uma época que se tornava um arquivo de factos que lhe proporcionaram muitas histórias da História. Que desfazia qualquer parecença com o título da sua primeira obra de 1948, a novela Mundo Fechado, porque, apesar de muito do seu mundo se situar em grande parte no cenário do Douro e do Minho, abriu-o a narrativas fascinantes como seria As fúrias(1977), a contos em A Brusca (1971), a romances históricos como A Monja de Lisboa sobre Maria da Visitação (1985), a biografias como a de Santo António (1979) ou Marquês de Pombal (1981), a ensaios como os de Dostoievski e a peste emocional (1981) ou Camilo e as circunstâncias (1981), a várias peças enquanto dramaturga como Garrett: O eremita do Chiado (1998), a oito adaptações ao cinema por Manoel de Oliveira e uma de João Botelho, a autobiografia O Livro de Agustina (2002), o relato de viagem Embaixada a Calígula (1961) e ainda na literatura infantil, como Dentes de rato (1987), entre outros títulos em cada um destes géneros.
O estilo de Agustina pertencia, segundo classificava o pensador Eduardo Lourenço, à corrente neo-romântica, em muito influenciado pela obra de Camilo Castelo Branco. Mas a sua vida também continha inúmeros episódios que rivalizavam com as invenções daquele escritor, afinal o seu pai deixara a família de lavradores e com 12 anos de idade emigrara para o Brasil. Aí, fez fortuna, tendo regressado e iniciado uma vida profissional nas áreas do espectáculos e do jogo que também inspiraram a escritora. Por seu lado, a mãe descendia de uma espanhola de Zamora. Como os pais mudavam de residência frequentemente, Agustina encontrou a paz na infância e na adolescência nas férias que passava na região do Douro, na casa do avô, que tinha uma boa biblioteca. Grande leitora dos clássicos franceses e ingleses, rapidamente o romance a seduz, sendo que se dedica às experiências na escrita ainda muito nova. Designadamente com dois romances em que usa o pseudónimo de Maria Ordoñes, intitulados Ídolo de Barro e Deuses de Barro.
Também no casamento a sua vida é diferente, pois casa em 1945 com o homem que lhe respondera a um anúncio que pusera no jornal em busca de uma pessoa culta para se corresponder. Como Alberto Luís estuda Direito em Coimbra, viverão aí alguns anos, mais três em Esposende e depois, para sempre no Porto.
Tão diferente da maioria dos autores nacionais, também o foi no ritmo de publicação, pois era raro o ano em que não editava um ou mais livros. A sua longa obra faz a escritora receber a maioria dos importantes prémios literários nacionais para as obras, o primeiro, Delfim Guimarães, em 1953, e o último, o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, em 2001, a par de mais treze distinções. Enquanto escritora também ganhou vário prémios, o primeiro em 1975, o Adelaide Ristori, do Centro Cultural Italiano de Roma, e o mais recente, em 2005, no Festival Grinzane de Cinema, em Turim, entre outros seis entretanto.
Além da literatura, a autora pertenceu ao concelho diretivo da Comunidade Europeia de Escritores em 1961 e 1962, foi diretora do jornal O Primeiro de Janeiro entre 1986 e 1987, responsável pelo Teatro Nacional D. Maria II entre 1990 e 1993, e membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social, além de pertencer às academias de Ciências, Artes e Letras de Paris, da Brasileira de Letras e das Ciências de Lisboa.
Como que num coroar da sua carreira, em 2004, foi-lhe concedido o Prémio Camões. Justificação: "o júri tomou em consideração que a obra de Agustina Bessa-Luís traduz a criação de um universo romanesco de riqueza incomparável que é servido pelas suas excepcionais qualidades de prosadora, assim contribuindo para o enriquecimento do património literário e cultural da língua comum".
A escritora estava desde julho de 2006 ausente da vida pública devido a questões de saúde. Antes, publicara o seu último livro: A Ronda da Noite. Uma coisa é certa, sem Agustina Bessa-Luís, a literatura portuguesa ficou hoje muito mais pobre.
D. Manuel Linda vai celebrar a missa exequial na terça-feira, às 16h00, na Sé do Porto. O funeral segue depois para a Régua, onde também está sepultado o seu marido, Alberto Luís, falecido em novembro de 2017.
por João Céu e Silva in Diário de Notícias | 3 de junho de 2019
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Diário de Notícias