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O centenário do alfarrabista tranquilo

Decano dos alfarrabistas portugueses, João Rodrigues Pires abriu as portas do seu Mundo do Livro, em Lisboa, há quase setenta anos, durante os quais deu a conhecer algumas raridades literárias da nossa bibliografia e se cruzou com nomes cimeiros da cultura. Hoje, ainda trabalha diariamente na sua loja, e no dia 8 de abril fez cem anos.

João Rodrigues Pires trabalhou na Livraria Sá da Costa antes de iniciar o seu negócio O Mundo do Livro guarda um enorme espólio de gravuras O Mundo do Livro começou com duzentos exemplares escolhidos a dedo João Rodrigues Pires é um auto-didata O único exemplar conhecido das Sátiras, de Sá de Miranda, hoje depositado na Biblioteca Nacional, é uma das muitas raridades que passaram pelas mãos de João Rodrigues Pires


É da Lisboa das pequenas coisas que emana o espírito gostoso que singulariza a cidade. Ternura sentimental que se instala nos lugares para crescer por dentro de nós, num afeto inconsciente que se funde no quotidiano para lhe reinventar o ritmo dos dias, e que o lisbonense verá sempre, através do prisma nostálgico, como qualquer coisa de seu, jóia de família que com mais ninguém se comparte e que só ele sabe amar a preceito. É isto que sucede aqui, nesta esquina íngreme da geografia queirosiana, onde o Teatro da Trindade se debruça sobre a Rua da Misericórdia para ver passar o buliço que desanda alheio a tudo o que vê, indiferente à quietude aparente dos três andares de o Mundo do Livro, onde nos fomos encontrar com João Rodrigues Pires, um alfarrabista que ainda hoje exerce diariamente o seu ofício, com a vitalidade invejável, como se não lhe pesassem os cem anos que leva já sobre os ombros.

Recebeu-nos com a simplicidade das pessoas interessantes, entre gravuras antigas, assinadas por Bartolozzi, William Hogarth e por outros nomes famosos que não me dei ao trabalho de identificar. Junto a nós, prontos a correr o mundo, alinhavam-se os vários volumes que compõem A Selva, de Ferreira de Castro, todos subscritos pela mão do seu autor; um manuscrito inédito de Aquilino Ribeiro, que foi grande amigo e frequentador assíduo daquela casa; e quatro elegantes livros com distintas obras de John Dos Passos, estes com dedicatórias assinadas pelo próprio punho daquele genial escritor norte-americano. Na montra, espreitava-nos a tiragem especial da obra completa de Jaime Cortesão, onde a sua viúva, Carolina Cortesão, inscreveu graciosamente o nome, para rematar com ternura as palavras bonitas que escrevera no texto.

Para lá do pequeno escaparate da entrada, sem salamaleques, penduravam-se na parede dois diplomas que premeiam uma vida. Um destes, outorgado pela Presidência da República italiana ao dono da casa em que estamos, confere-lhe l’onorifizenza di Cavalieri; e outro concede ao Mundo do Livro o Prémio Europa de la empresa Ejemplar, pelo facto de esta ser uma “empresa comprometida en producir y suministrar produtos y servicios de calidad para sus clientes”. Já na escada de acesso aos andares superiores, é um poema de Castro Alves que sobressai da parede pintada por Domingues, em 1962, para nos brindar com o espírito benfazejo que preside àquela casa: “Oh! Bendito o que semeia/Livros... livros à mão cheia/ E manda o povo pensar!/ O livro caindo n’alma/ é gérmen que faz a palma /É chuva que faz o mar.”

A partir daqui, com a tranquilidade de duas pessoas que se conheceram na loja há uns bons 40 anos, e como se não houvesse outros tantos de diferença entre as nossas idades, iniciamos a conversa. Coisas banais, ideias sem seguimento e vislumbres de instantes há muito dispersos pelos recantos solitários da memória, são os que primeiro se ajeitam na conversa, como aquele em que a atriz de teatro e cinema Beatriz Costa, ainda novinha, passou por ali defronte, Rua da Misericórdia abaixo, de braço dado com o poeta, contista e dramaturgo António Botto.

Na sala onde estamos anichados a um canto, quase só há gravuras, e as prateleiras de boa madeira já só exibem sobras das opulentas lombadas que outrora as recheavam.

“Passa-se aqui, às vezes, uma semana que não se vende um livro... e eu desisti de comprar”, disse-me para quebrar o silêncio. Mas nem sempre foi assim, continuou. “Durante anos vendia mil exemplares em cada catálogo que mandava imprimir e que expedia para toda a parte; Japão, França, Itália, América... vendia-se muito livro de consulta, de trabalho. Não era o livro raro!”

Contudo, hoje os tempos são outros, ou é talvez a idade do meu interlocutor que também é outra e O Mundo do Livro sobrevive agora do comércio das gravuras amealhadas ao longo dos anos. E isto apesar de o negócio do livro antigo não estar moribundo, pois há, aqui bem perto, livrarias que lhe dão expressão e seguimento, como a Campos Trindade, a Bizantina, e algumas mais, cujo nome agora me escapa, dirigidas por gente muito competente, na casa dos 40, 50 anos, que não tardarão em lançar na senda do livro uma novíssima geração de alfarrabistas lisbonenses.

Um esconso como berço

É verdade que dos muitos alfarrabistas que havia por estas bandas, desde os confins da calçada do Combro à Misericórdia, passando pela travessa da Queimada, Rua Nova da Trindade, calçada do Duque, Rua do Alecrim, e São Pedro de Alcântara, já poucos restam. E alguns dos que existem têm a data da morte anunciada para breve. A subida incomportável das rendas e os interesses imobiliários instalados na zona não se compadecem com as dificuldades dos livreiros. E, sendo assim, nada fica igual sob o céu acatitado que Lisboa serve aos turistas, pois, como escreveu Manuel Hermínio Monteiro, a propósito de outro assunto, também aqui, há muito que “chegámos a um tempo de miseráveis e oportunistas explicações para tudo”.

Tempo que era bem diferente quando O Mundo do Livro iniciou a atividade, no final da primeira metade do século XX, num vão de escada do número 18 da Rua Nova da Trindade. No mesmo prédio onde a Academia dos Amadores de Música tem a sua sede mais que centenária e que era então vizinho da esplêndida e já vetusta Livraria Barateira, fundada em 1914, onde havia um enorme armazém de livros antigos e usados, que forneceu durante anos e anos gerações de alfarrabistas.

Foi nesse esconso acanhado que O Mundo do Livro começou como podia, com 200 livros escolhidos a dedo, 300 escudos para o que desse e viesse e um nome de loja onde se jogava já a ambição juvenil de ir mais longe e de crescer. Nome que levou um ilustre cliente desses dias a gracejar ante a pequenez do estabelecimento: “Então, isto é que é O Mundo do Livro?” E a resposta não tardou em fazer-se ouvir, um par de anos volvidos, quando O Mundo do Livro se estabeleceu na esquina da Rua da Misericórdia, onde está desde 1951. Rua esta, que, em tempos idos, se denominou Rua de O Mundo, por ser esse o nome de um importante jornal que ali existiu no último quartel do século XIX e em homenagem do qual se rebatizou aquela artéria, até então conhecida por Rua de São Roque. Dito isto, vislumbro agora o propósito que o meu interlocutor tinha por detrás da escolha do nome da empresa livreira que fundou num vão de escada e neste vejo ambição, muita labuta e vontade de vencer.

Homem simples, mas prendado, afeito ao trabalho desde cedo pela força das circunstâncias, que o tornaram órfão de pai com a família a cargo, numa idade em que ainda tudo daquele se precisa, João Rodrigues Pires é um autodidata com mérito bastante para envergonhar muita gente que por aí anda a alardear graus académicos. Começou nos livros porque os entendia, e nisso foi talvez herdeiro de um dom que já andava entre os homens da sua gente, que é oriunda de Coimbra, cidade onde o seu avô já mercava livros. A infância, passou-a na Guiné colonial, da qual conserva boas memórias rematadas por um dia triste, pois foi lá que perdeu o pai e que viu a família arruinar-se.

Múltiplas entradas

Vindo de uma terra então desprovida de escolas, chegou a Lisboa sem as ter frequentado, já adolescente, e sem qualquer diploma que provasse o que sabia. Pouco depois, apresentou-se diante dos examinadores escolares e, superadas as provas que lhe exigiram, enveredou pela escola comercial. Contudo, não tardou em desinteressar-se da mesma, asfixiado por temas que nada o preparavam para a vida que queria seguir. Sem perda de tempo, lançou-se então no mundo do trabalho e na leitura empenhada de tudo aquilo que lhe parecia útil para governar o futuro. Trabalhou para o livreiro Sá da Costa e foi o primeiro empregado daquela empresa a entrar para a Livraria do Chiado, passando então sete meses num armazém da empresa, na Rua da Hera, a elaborar, segundo a classificação decimal, as fichas de todos os livros que foram colocados nas prateleiras da nova loja. Ordenamento até então inédito, ou quase inédito entre nós, que permitia ao livreiro aceder facilmente aos livros existentes através de múltiplas entradas. Este processo manual de classificação e registo bibliográfico, hoje impensável num tempo regido por computadores, tinha-o ele aprendido sem mestres, pela leitura atenta de dois livros que comprara. E, depois disto, serviço não lhe faltou. Porém, o seu sonho era estabelecer-se por conta própria, e a livraria que hoje conserva foi o palco do melhor dos seus sonhos. Foi lá que organizou, em 1966, com o professor Pina Martins, uma grande exposição sobre Dante Alighieri. Acontecimento então acompanhado por conferências e encontros vários que, ao aproximarem as culturas portuguesa e italiana, encontraram eco na imprensa escrita da época e na Emissora Nacional, motivo pelo qual foi agraciado com o grau de Cavalieri que se exibe por detrás do balcão da entrada da loja.

Além deste, muitos foram os momentos altos da sua carreira de alfarrabista. E é com ternura que nos fala dos livros valiosos que passaram pelas suas mãos. O único exemplar conhecido das Sátiras, de Sá de Miranda, hoje depositado na Biblioteca Nacional, é uma das recordações que lhe aviva o brilho dos olhos. Embalado pelo momento, mostra-me a edição fac-similada que O Mundo do Livro publicou a partir de um original inglês do século XVI, onde se narra a viagem que D. Francisco de Almeida pretendia fazer entre as ilhas Canárias e a Índia. Navegação que terá ido parar ao Brasil no ano 1496, ou seja, a ser verdadeiro o relato, quatro anos antes de Pedro Álvares Cabral ter descoberto a Terra de Vera Cruz.

Como a conversa vai animada, muitos outros títulos se juntam às suas histórias. Tantos, que aqui não cabem. E é com a poalha luminosa da tarde a esfumar-se em ouro ralo sobre o tampo da mesa onde folheia as raridades que me mostra que o velho livreiro se detém, momentaneamente absorto pela leitura de alguma passagem que o empolgam. E nós surpreendemo-nos a contemplá-lo mergulhado em silêncio litúrgico e distante. Afinal, perguntamo-nos, o que são cem anos para quem está acostumado a conviver com livros que já somam vários séculos? São pouco mais que o começo... Talvez seja esta a fonte da sua juventude centenária. O tempo o dirá.


por Lourenço Henriques-Mateus (texto) e Miguel Manso (fotografia) in Público | 7 de abril de 2019
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público 

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