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A revista de católicos que acabou no MRPP
Fundada em 1963 por um grupo de católicos progressistas, a revista O Tempo e o Modo teve um grande impacto junto de uma jovem geração de intelectuais da oposição que não alinhava com o PCP nem se revia na estética neo-realista. Os seus 130 números podem agora ser integralmente consultados online.
O Tempo e o Modo, uma revista criada por católicos que abalou o conservadorismo do Portugal dos anos 60 com os seus cadernos que questionavam o casamento ou perguntavam provocatoriamente na capa “Deus o que é?” — e que chegou ao 25 de Abril transformada em órgão informal do MRPP –, acaba de se juntar às muitas publicações portuguesas do século XX já disponíveis no portal Revistas de Ideias e Cultura.
No novo site agora inaugurado, e que será apresentado esta quinta-feira à tarde, pelas 18h00, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, o leitor encontra não apenas os 130 números de O Tempo e o Modo – contabilizando os já referidos cadernos, que só não eram numerados para escaparem à censura prévia –, mas também uma extensa documentação que nos ajuda a perceber a peculiar história desta revista lançada por António Alçada Baptista e João Bénard da Costa: manuscritos que testemunham o período de conceção do projeto, com sugestões de rubricas e listas de colaboradores a convidar, os muitos artigos que foram cortados pela censura ao longo dos primeiros anos, um relatório da PIDE, ou ainda uma secção de testemunhos com alguns depoimentos inéditos, como as entrevistas em vídeo de Amadeu Lopes Sabino, que liderou a redação de O Tempo e o Modo no período de transição do final dos anos 60 e do início da década seguinte, e do recém-desaparecido líder histórico do MRPP, Arnaldo Matos, cujo partido assumiu o controle da revista na sua fase final.
Há também uma secção de correspondência, que abre com uma divertida carta que António Alçada Baptista endereça em 1964 à Censura protestando contra o corte, num número dedicado a Shakespeare, de um trecho de Hamlet traduzido por Sophia de Mello Breyner Andresen. “Será por causa da última frase?”, pergunta. É que o dito excerto acabava assim: “O fantasma avança – Pára-o! Fá-lo parar Marcelo!”
Como acontece com todas as outras publicações já integradas no portal Revistas de Ideias e Cultura — um projeto coordenado por Luís Andrade e desenvolvido, com a colaboração da Fundação Mário Soares, pelo Seminário Livre de História das Ideias da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa —, esta versão digital de O Tempo e o Modo poderá ser lida sequencialmente, mas também consultada com o auxílio de uma rede de oito índices que permite, por exemplo, pesquisar por autores de artigos e por nomes ou obras citados, mas também por conceitos ou assuntos.
Entre os 587 nomes que constam do índice de autores, Bénard da Costa é o que assina mais artigos (71), seguido por Vasco Pulido Valente (61) e Nuno Bragança (56). O site lista os 21 autores mais produtivos, mas a estatística torna-se pouco fiável para os últimos anos da revista, quando a ala maoísta impôs práticas de coletivismo que dispensavam a identificação dos autores. Ainda assim, podem citar-se entre os colaboradores mais assíduos, além do próprio Alçada Baptista, nomes que vão de Jorge de Sena, Eduardo Lourenço ou José Palla e Carmo a autores das gerações seguintes, como Alberto Vaz da Silva, o poeta e tradutor José Bento, os sociólogos Manuel de Lucena e Luís Salgado de Matos, o cineasta António Pedro Vasconcelos ou o então muito jovem Nuno Júdice, que assina 20 textos, incluindo artigos e poemas, entre 1968 e 1971, participando ainda, em 1984, no número único da malograda terceira série da revista.
Já os tops de conceitos, assuntos e personalidades dão indicações curiosas, mas devem ser lidos ainda com mais cautelas. Basta notar, por exemplo, que Marx e Lenine são os nomes com mais ocorrências, e que Estaline e Mao dão luta a John F. Kennedy e Jesus Cristo nos lugares seguintes, um ranking que seria bastante mais surpreendente se a revista não tivesse sobrevivido alguns anos à queda da ditadura.
Já a pré-história da revista remonta ao final dos anos 50, quando um conjunto de jovens católicos descontentes com o regime e com a hierarquia da Igreja – João Benard da Costa, Nuno Bragança, Pedro Tamen, Alberto Vaz da Silva e Mário Murteira –, que se conheciam da Juventude Universitária Católica (JUC) e da redação do seu jornal, Encontro, começam a planear lançar uma publicação cujo modelo mais próximo seria a francesa Esprit, fundada nos anos 30 pelo ideólogo do personalismo cristão, Emmanuel Mounier, e então dirigida por Jean-Marie Domenach. Um sonho que só se pôde concretizar quando António Alçada Baptista, alguns anos mais velho do que os restantes, se deixou seduzir pelo projeto e decidiu lançar e financiar O Tempo e o Modo através da sua editora, a Moraes, que adquirira alguns anos antes.
Oração de abertura
O primeiro número sai em janeiro de 1963, com Alçada Baptista como diretor e Bénard da Costa como chefe de redação. Dois dos seus três artigos de fundo são assinados por futuros Presidentes da República do Portugal democrático: Mário Soares e Jorge Sampaio. Num depoimento publicado no Diário de Notícias em 1983, Bénard da Costa recorda que se vivia então a crise académica de 1962 e que existia alguma proximidade entre elementos do grupo que se preparava para lançar O Tempo e o Modo e dirigentes da luta estudantil, como Manuel Lucena, que passara pela JUC, Jorge Sampaio, Medeiros Ferreira ou Vítor Wengorovius. Mas nem todos aprovavam a ideia de abrir as páginas da revista a não crentes, e a questão acabou mesmo por ir a votos. O episódio é conhecido e Bénard conta-o assim: “Antes da votação, um de nós sugeriu que se rezasse uma ave-maria para que o Espírito santo nos iluminasse: a intervenção divina pendeu para a abertura por cinco votos a favor e dois contra”.
O primeiro conselho consultivo de O Tempo e o Modo incluirá assim, a par do grupo promotor e de outros católicos de esquerda de várias sensibilidades – como Adérito Sedas Nunes ou Orlando de Carvalho –, Mário Soares, Salgado Zenha, Jorge Sampaio ou Manuel Lucena, mas também Sottomayor Cardia, então militante clandestino do PCP, que se demitirá da revista na sequência de um artigo em que Alçada Baptista criticava o extremismo de Fidel Castro. Vasco Pulido Valente junta-se pouco depois e será o secretário da redação até ao final de 1966, quando deixa a revista, vindo a ser substituído por Helena Vaz da Silva.
Quando este grupo alargado e plural se reúne para fazer o balanço do número inaugural, a grande discussão, conta Bénard da Costa, não foi em torno dos textos mais marcadamente políticos, mas das contribuições da secção de Artes e Letras, liderada por Alberto Vaz da Silva, e que sempre constituiu uma espécie de núcleo autónomo no interior da redação. Num contexto cultural marcado, à esquerda, pela hegemonia do neo-realismo, os autores a que esse número inicial dava destaque pareceram a muitos francamente inusitados. Ruy Belo escrevia sobre Herberto Helder, António Ramos Rosa discorria sobre poesia e humor a propósito de O Doge, de M. S. Lourenço, e Manuel Poppe atrevia-se a dar visibilidade a uma autora conotada com o regime, Agustina Bessa-Luís, dedicando seis páginas a uma elogiosa recensão de O Manto.
Se a contribuição fundamental de O Tempo e o Modo para renovar um ambiente cultural dominado pelos pólos antitéticos do regime e do neo-realismo é hoje amplamente reconhecida, seria apressado deduzir que esse tenha sido, desde o início, um desígnio assumido e consensual. Se também nesse aspeto a revista se constituiu como uma espécie de contraponto à Seara Nova e à Vértice, então muito próximas do Partido Comunista – a primeira, com os seus 1604 números, já está também disponível no portal Revistas de Ideias e Cultura –, esse papel, mais do que a concretização de um programa prévio, resultou das predileções estéticas de alguns dos seus responsáveis e do espaço que a revista deu a autores como Eduardo Lourenço, Agustina, Jorge de Sena ou Ruy Belo. O número dedicado a Sena em Abril de 1968 é ainda hoje uma referência da bibliografia relativa ao autor de Sinais de Fogo.
A primeira grande mudança na revista dá-se com a saída de Alçada Baptista pelos finais de 1967, embora formalmente se mantenha durante mais algum tempo como diretor. Com a Moraes a atravessar dificuldades e O Tempo e o Modo a dar prejuízos consideráveis, propõe-se ceder graciosamente a revista a quem quisesse tomar conta dela. Bénard da Costa assume então a direção e a propriedade legal do título passa para uma sociedade anónima constituída pela equipa da revista e por gente das suas relações.
Bénard da Costa constitui então uma nova redação, cuja chefia será assumida pelo jornalista e escritor Amadeu Lopes Sabino. A chamada Nova Série só se inaugurará de facto com o número 73, de Novembro de 1969, mas a revista já anunciara em Janeiro desse ano o advento de uma nova fase, que em bom rigor já então estava em andamento.
“Uma fase marcada pela entrada na redação de uma série de pessoas ligadas ao movimento estudantil e às agitações que refletem em Portugal o Maio de 68, e que abrem o O Tempo e o Modo a pessoas como eu, o Fernando Rosas, mais tarde o Arnaldo Matos, o Luís Matoso, o Sebastião Lima Rego”, diz Lopes Sabino no seu depoimento. Um grupo, acrescenta, que “vai ser o núcleo central da futura redação, juntamente com uma pessoa de grande importância em todo este processo, Jorge Almeida Fernandes, que vinha da anterior redação”.
Duas gerações
Mas a par destes novos colaboradores, vários dos quais estariam depois na fundação do MRPP, a redação acolhe também nomes então mais próximos de um socialismo de esquerda, como Armando Trigo de Abreu, João Cravinho ou João Martins Pereira, “um homem muito firme nas suas convicções”, descreve Lopes Sabino, e que representava um sector da redação que se opunha com frequência à ala maoísta, que ia ganhando cada vez mais preponderância e pretendia radicalizar politicamente a revista.
Embora ele próprio tenha estado inicialmente próximo do MRPP, Lopes Sabino afirma ter sempre tentado manter o equilíbrio entre estas duas fações que se opunham cada vez mais claramente no interior de O Tempo e o Modo, cuja redação lidera até 1971, quando é preso pela PIDE. Por essa altura já se incompatibilizara com Bénard da Costa, que se afastara no final de 1970 e fora substituído na direção por Luís Matoso. Tendo em conta a evolução da revista após a sua saída, Amadeu Lopes Sabino acha que o período em que chefiou a redação corresponde à verdadeira segunda série, e que a fase que se inicia em 1972 e que desembocará no controle absoluto da publicação pelo MRPP corresponde, na prática, a uma terceira série, notoriamente distinta da anterior.
A cronologia pessoal de Bénard da Costa no que respeita à revista é um pouco diferente: “Para mim morreu em 1970, andava eu a fazer de marido enganado em O Passado e o Presente, de Manoel de Oliveira, e em O Tempo e o Modo também”, escreve em 1983. E vinte anos depois, numa conferência comemorativa dos 40 anos da publicação, relata: “Os ventos de 68 empurraram-nos, e empurraram-me particularmente a mim, para tentar abrir a revista às novas correntes surgidas nessa época, aos “maístas” [do Maio 68] e aos “maoístas”, que representavam linhas de pensamento fora das duas ortodoxias: a oficial ou a do Partido Comunista. Mas esse diálogo que então se preparou e que eu pensei poder ser um novo diálogo enriquecedor, transformou-se, a breve trecho, durante o ano de 1970, num domínio crescente da ala maoísta”.
Um testemunho que, se acentua as crescentes contradições, também sugere que não devemos olhar para essa convivência entre um Bénard da Costa e um Arnaldo Matos à luz do posterior percurso de ambos, mas num momento histórico em que o futuro presidente da Cinemateca não deixava também de ser, à sua maneira, um radical.
O jornalista do PÚBLICO Jorge Almeida Fernandes, que já estivera na fase inicial de O Tempo e o Modo e, depois de um intervalo forçado para fazer a tropa, regressara em 1969, confirma que a redação se dividia então entre os que queriam “uma revista essencialmente política” e os que a preferiam mais “virada para assuntos de sociedade e civilização”. Na defesa desta última perspetiva, mais herdeira do espírito original do projeto, destaca o papel do sociólogo José Carlos Ferreira de Almeida.
Um debate que, aliás, os próprios leitores podiam seguir em detalhe. O n.º78, de Abril de 1970, abre com o relato circunstanciado de uma mesa-redonda promovida na redação justamente para discutir que caminhos poderia seguir a revista, com intervenções de sete redatores “escolhidos em reunião geral”: João Ferreira de Almeida, Bénard da Costa, João Martins Pereira, Jorge Almeida Fernandes, Nuno Júdice, Luís Lobo e Lopes Sabino.
Para Almeida Fernandes, as mudanças de 1969 justificavam-se, já que, argumenta, “com o marcelismo e a previsão de uma abertura do regime, estava ultrapassado o conceito inicial de O Tempo e o Modo, que nascera em 1963 e fora a revista possível durante o salazarismo”. Mas nem por isso deixa de considerar que “o período mais importante, o que trouxe mais novidade e teve mais impacto, foi o dos primeiros anos”.
E o modo como a revista definhou no pós-25 de Abril, acabando por se extinguir em 1977 – mesmo se foi nesse período que atingiu as suas tiragens mais elevadas, com números que chegaram aos 10 e 15 mil exemplares – não o surpreende. “O sentido de O Tempo e o Modo é inseparável do antigo regime, e a revista foi tanto mais importante nessa fase inicial em que era muito censurada”.
Luís Andrade prefere sublinhar que “cada uma das fases de O Tempo e o Modo reúne uma das duas gerações da década de 60 – a da crise de 1962 e a da radicalização de 1969 –, pelo que refletem as transformações políticas, sociais e de gosto que uma e outra trouxeram à realidade nacional”. E se nos seus últimos números, a revista chegava a apelar na capa ao voto no MRPP, Luís Andrade nem por isso subestima a relevância da Nova Série, que constitui, nota, “o repositório português mais completo da esquerda crítica do marxismo soviético e amiga das novas expressões radicais do pensamento teórico”.
por Luís Miguel Queirós in Público | 4 de abril de 2019
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público