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Manuel Graça Dias, o arquiteto arquitetonicamente incorreto

Graça Dias era um dos grandes comunicadores da arquitetura portuguesa. Com uma obra heterodoxa, interrogou como poucos a nossa paisagem urbana, não só com os seus edifícios, mas também com uma vida dedicada à divulgação da arquitetura.

Manuel Graça Dias, foto de Rita Chantre Manuel Graça Dias no seu atelier, foto de Rui Gaudêncio Graça Dias no Teatro Azul, em Almada Teatro Lu.Ca, em Belém, com teto pintado por Columbano Bordallo Pinheiro. Foto de Miguel Manso Teatro Municipal de Almada, DR/Atelier Contemporânea Teatro Municipal de Almada, DR/Atelier Contemporânea Teatro Azul em Almada, DR/Atelier Contemporânea Incubadora de Empresas, Vila Verde (Instituto Empresarial do Minho), DR/Atelier Contemporânea Escola de Música, Artes e Ofícios, Chaves. DR/Atelier Contemporânea Casa Ana Vidigal, DR/Atelier Contemporânea Pizaria Casanova, em Santa Apolónia. DR/Atelier Contemporânea Sede da Associação dos Arquitetos Portugueses em Lisboa. DR/Atelier Contemporânea


Manuel Graça Dias, um dos mais ecléticos e coloridos arquitetos portugueses da sua geração, morreu este domingo à noite no hospital da CUF, em Lisboa, de um cancro no pâncreas, disse ao PÚBLICO Egas José Vieira, o seu sócio no atelier Contemporânea. Tinha 65 anos.

Nos anos 80 e 90 do século passado, Graça Dias ajudou a construir uma Lisboa cosmopolita, criando alguns dos espaços de que precisava uma geração com novos hábitos de consumo, do restaurante italiano Casanostra, no Bairro Alto, à Loja Ana Salazar, na rua do Carmo.

Com o Pavilhão de Portugal na Exposição Universal de Sevilha, em 1992, o arquiteto mostrou, lá fora e cá dentro, que o país podia ser alegre e menos formal, coroando o edifício com um lettering em que brincava com a palavra “Portugal”. Nesses anos em que desenvolveu “um pós-modernismo português”, Manuel Graça Dias emergiu como “a figura central” de uma nova geração de arquitetos, explica Jorge Figueira, crítico de arquitetura do PÚBLICO.

Trabalhou grande parte da sua vida profissional com Egas José Vieira, formando uma dupla de arquitetos quando muitos da sua geração preferiram ter um atelier em nome próprio. O gosto pelo trabalho em equipa e a generosidade, que fez dele um professor que muitos estudantes universitários recordam, era uma das características da sua personalidade. Era atualmente professor na Faculdade de Arquitectura do Porto e na Universidade Autónoma de Lisboa.

Foi em 1990 que Graça Dias e Egas José Vieira abriram o atelier Contemporânea em Lisboa, atualmente situado na rua Borges Carneiro, de onde saíram obras como a sede da Associação dos Arquitetos Portugueses (1991), em Lisboa, o Teatro Municipal de Almada (2005), a Escola de Música, Artes e Ofícios de Chaves (2004-2008) e, mais recentemente, a requalificação do Teatro Lu.Ca(2018), também em Lisboa.

A cor como matéria da arquitetura

Num país em que a cultura arquitetónica privilegia a parede branca ou as tonalidades discretas emprestadas pelos materiais, Graça Dias e o atelier Contemporânea ergueram um Teatro Azul em Almada, pintaram a pequena fachada do Teatro Lu.CA de vermelho forte ou introduziram um verde-água tropical no restaurante Casanostra, porque a cor também é matéria da arquitetura, sendo capaz de emprestar novos sentidos aos edifícios e à cidade. O arquiteto sublinhava, no entanto, que a cor não servia para colorir os edifícios. “Cada arquitetura tem a sua razão de pintura; o que pouco tem a ver com as cores dessa pintura”, escreveu num texto intitulado Cores, reunido no livro de crónicas Vida Moderna, publicado em 1992.

Era um grande comunicador, tendo feito dos poucos programas de arquitetura que chegaram à televisão em Portugal — na TV2, de 1992 a 1996. Escreveu regularmente em jornais generalistas, como O Independente ou o Expresso, mas também em revistas especializadas como a Arquitectura Portuguesa ou o Jornal dos Arquitetos, de que foi diretor por duas vezes. Falava de casas de emigrantes como a nova arquitetura popular portuguesa, de guindastes, de tetos falsos, de pormenores que poucos viam, sintetizados nos expressivos desenhos que acompanhavam regularmente os seus artigos na imprensa.

“Há um momento em que Manuel Graça Dias é imbatível, no sentido em que ele comunica, fala, escreve e desenha de um modo que é diferente”, afirma Jorge Figueira, tese que defende no seu livro A Periferia Perfeita, pós modernidade na arquitetura portuguesa (1960-1980). Nesse momento, na passagem dos anos 80 para os anos 90, “quando está a fazer as primeiras obras, quando escreve em O Independente, quando faz o Pavilhão de Sevilha, ele é o arquiteto mais alegre, mais radioso, mais interveniente, mais arguto”.

Mostra a uma geração de jovens estudantes e de arquitetos recém-formados que há uma forma diferente de ser arquiteto e de fazer arquitetura portuguesa: “Coloca o quotidiano na arquitetura, o pequeno episódio, as incongruências, aquilo que não é necessariamente bonito e aceite pelo bom gosto. Ele coloca tudo isso como matéria da arquitetura, passível de ser lido e abraçado pelos arquitetos”, continua Jorge Figueira.

O tema mais óbvio é a casa dos emigrantes, com Manuel Graça Dias a trazer serenidade ao debate num artigo sobre o assunto logo em 1985, num número do Jornal de Letras. “É óbvio que ele não inventa o debate de que os erros e as incongruências também fazem parte da arquitetura e da vida. Tudo isso é muito pensado antes pelo Robert Venturi, de Aprendendo com Las Vegas e de Complexidade e Contradição em Arquitectura, e pelo Manuel Vicente, o seu grande mestre com quem trabalhou em Macau. Tinha essa filosofia de relação crítica mas heterodoxa com o mundo. O arquiteto tinha de recompor, de recolocar, não tinha propriamente de inventar nada de novo.”

O pavilhão de Sevilha

Manuel Carlos Sanches da Graça Dias nasceu em Lisboa a 11 de abril de 1953, tendo vivido em Moçambique em criança: são vivas as suas memórias de “uma infância com arquitetura moderna”, porque na cidade nova que era Lourenço Marques, a atual Maputo, morava com a família num edifício de 11 andares desenhado por Pancho Guedes, outro heterodoxo da arquitetura portuguesa. Forma-se em 1977 na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa (ESBAL), no ano em que Charles Jencks anunciou o fim do Movimento Moderno, com a obra The Language of Post Modern Architecture, como escreve Ana Vaz Milheiro num itinerário pela obra do atelier Contemporânea, publicado pelo PÚBLICO e pela Ordem dos Arquitetos.

É na ESBAL, onde está quando se dá a revolução de Abril, que conhece Manuel Vicente, o professor que lhe vai dar o primeiro emprego em Macau, onde está de 1978 a 1981. É com o mestre e com Helena Rezende que publica o livro Macau Glória, a Glória do Vulgar, uma espécie de Aprendendo com Las Vegas transposto para Macau, porque Macau está para o pós-modernismo em Portugal como Las Vegas para o pós-modernismo internacional, defende Jorge Figueira.

Em Chaves, longe dos centros onde tradicionalmente se produz a cultura arquitetónica, longe de Lisboa e do Porto, faz várias obras na década de 80. Desenha uma piscina em forma de ovo estrelado para o Edifício Golfinho, já um híbrido com uma planta curva a caminho do pós-modernismo. Mas a obra que melhor simboliza os primeiros anos em que já trabalha com Egas José Vieira, onde sintetiza o tal pós-modernismo português, tudo o que tinha vindo a pensar e a desenhar, é o Pavilhão de Sevilha, em que combina, sem hierarquias, geometrias eruditas e grafismos comunicantes, elementos arquitetónicos e decorativos. “É design, é arquitetura, é colagem, é pintura. Não houve nada que ficasse de fora. Isso provocou um certo espanto, porque as nossas representações eram sempre cerimoniais, por serem clássicas ou por ser modernas. O Manuel Graça Dias mostrou ali uma disrupção, um jogo arquitetónico, que nunca voltou a acontecer. Nunca depois Portugal foi representado com esse lado divertido, espontâneo, sem pedir licença.”

Tal como o pavilhão, a sede da Ordem dos Arquitetos também resulta destas colagens. “Há arquitetos que gostam de retirar coisas, ele está interessado em colocar coisas. Mas Graça Dias não era um homem da história clássica, partia antes da arquitetura moderna, ampliando-a com a cultura popular e pop. Ampliava o léxico e o modo de estar moderno, criando um conforto textural e ótico”, afirma Jorge Figueira.

O crítico de arquitetura destaca ainda a força dos seus interiores. “O desenho de interiores dele é sempre extraordinário, sempre cheio de ilusões óticas, de pequenos detalhes, para criar a sensação de que se está num espaço arquitetónico [autónomo]. O Casanostra é um sítio português, africano, exótico, moderno. Neste restaurante do Bairro Alto, há um certo tropicalismo e essa hibridez, que tem qualquer coisa de antecedente africano, onde ele viveu, não vem só dos anos em Macau.”

No final dos anos 90, Ana Vaz Milheiro, também crítica do PÚBLICO, é da opinião que “os vestígios da presença figurativa pós-moderna se neutralizam”, intensificando-se o diálogo com o contexto, como escreve no itinerário dedicado ao atelier.

Com o Teatro Municipal de Almada, uma obra da maturidade, Graça Dias contou, numa entrevista ao PÚBLICO, que mais do que criar um objeto elegante quis completar o que a cidade dos subúrbios de Lisboa lhes dava. “Gosto deste ambiente de lojas de colchões, garagens. Não podemos achar que tudo isto é feio e viver para dentro.” Como explicou na mesma entrevista, não quiseram criar, arrogantemente, uma praça a anunciar que estava ali um teatro, mas fizeram o equipamento cultural ir ter com a cidade que estava à volta.

Nessa cidade feita de fachadas que mais parecem traseiras, os espectadores são convidados a sair do teatro diretamente para o passeio em que todos passam, ajudando a consolidar a vida urbana. No século XXI, o atelier mantém a ironia das décadas anteriores e se o Teatro Azul não deu origem a uma praça em Almada conseguiu, pelo menos, criar um beco dos Artistas.

“Mesmo no Teatro de Almada, uma obra já com outra segurança projetual, ele nunca abandona um desassossego e uma irrequietude. Ele pode ser professor da Universidade do Porto, pode deixar de escrever como escrevia nos anos 80, mas mantém-se fiel à sua visão enquanto arquiteto. Isso também é muito claro no Teatro Lu.Ca. No sentido, de assumir um lado pictórico, cenográfico, textural, preenchido, não arquitetonicamente correto”, diz Jorge Figueira.

Noutra entrevista, desta vez ao jornal Expresso, Manuel Graça Dias explicou a origem do nome Contemporânea com que assinam os projetos: “O nome do atelier é uma homenagem a Fernando Pessoa, que teve uma revista chamada Contemporânea. É um nome que traduz a nossa vontade de nos mantermos ligados ao que ocorre à nossa volta, não nos fixando num único modo ou maneira de ver o mundo.”

O velório realiza-se nesta segunda-feira à tarde na Basílica da Estrela, em Lisboa, segundo a agência Lusa.


por Isabel Salema in Público | 25 de março de 2019
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público 

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