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Mudar o Museu da Música para Mafra é matá-lo ou dar-lhe uma segunda vida?
O debate em torno da transferência do museu nacional, provisoriamente instalado na estação de metro do Alto dos Moinhos, em Lisboa, continua a agitar o meio musical.
Para muitos, o Palácio Nacional de Mafra, onde já é certo que ficará, não tem condições para ser a casa por que esta coleção tanto anseia há 25 anos.
Debaixo do viaduto da Avenida Lusíada, que liga Benfica à Cidade Universitária, esconde-se um museu nacional que batalha há 25 anos para encontrar uma casa digna de o receber. É no interior da estação de metro do Alto dos Moinhos, em Lisboa, que o Museu Nacional da Música está sediado desde 1994. Para lá foi com a promessa de ser um poiso provisório. Mas o temporário transformou-se em permanente. Até agora. Um protocolo assinado em janeiro oficializou a transferência do museu para o Palácio Nacional de Mafra em 2021, mas são várias as vozes que se insurgem contra a mudança, alimentando uma polémica que parece não ter fim à vista.
O périplo do Museu da Música remonta, pelo menos, a 1946, ano em que iniciou a sua atividade. Desde então, passou por vários locais da capital e fora dela. Primeiro esteve no Conservatório Nacional, no Bairro Alto, seguindo-se o Palácio Pimenta, no Campo Grande, e, mais à frente, a Biblioteca Nacional, onde o espólio foi depositado. A coleção passou ainda pelo Palácio de Mafra, até que, na sequência de uma iniciativa conjunta da Lisboa 94 – Capital Europeia da Cultura com o Metropolitano de Lisboa e a Direção Geral do Património Cultural (DGPC), foi assinado um protocolo do qual resultou a instalação do museu no Alto dos Moinhos.
Mas a trama política em torno do museu adensou-se nos tempos de Passos Coelho. Em 2014, Jorge Barreto Xavier, secretário de Estado da Cultura do então Governo PSD/CDS-PP, assumiu a intenção de transferir o museu para o Palácio de Mafra. Entretanto, o executivo mudou e com ele o destino pretendido para a coleção. Em novembro de 2017, Luís Filipe Castro Mendes, antecessor de Graça Fonseca no Ministério da Cultura (MC), anunciava a decisão de dividir o Museu da Música em dois pólos, um a funcionar no Palácio Foz, em Lisboa, e o outro no Palácio de Mafra. A opção foi então justificada por fatores de ordem financeira: transferir todo o museu para Mafra ficaria caro e não seria possível assegurar a mudança até ao fim de 2018, data em que terminava o contrato de cedência do espaço com o Metro de Lisboa.
Até janeiro, foi essa a ideia que vigorou, não obstante as declarações contraditórias que Castro Mendes fez no início do ano passado no Parlamento, quando garantiu que "a exposição permanente" do museu ficaria em Mafra e que o outro pólo receberia apenas o Arquivo Nacional Sonoro e o acervo de "etnomusicologia e de música popular portuguesa". Ainda que o Palácio Foz tivesse deixado de constituir uma opção viável, continuava a acreditar-se na divisão do museu em dois pólos. A 31 de janeiro, porém, a ministra da Cultura desfez as dúvidas, ao assinar um protocolo de parceria entre a Câmara de Mafra e a DGPC com vista à comparticipação financeira da instalação do museu no Palácio de Mafra: a autarquia contribuirá com um milhão de euros, os restantes dois (de um investimento total de três milhões de euros) virão do MC. As obras terão início este ano e o museu deverá abrir ao público em 2021, anunciou então Graça Fonseca.
Semanas antes da assinatura do protocolo, o movimento de cidadãos Fórum Cidadania Lx lançou o debate em torno da questão. Num documento publicado no seu site, o grupo deixou um “apelo à Ministra da Cultura” para que a transferência seja alvo das “melhores das ponderações”. Defendendo que “Lisboa não deve prescindir do património deste Museu Nacional, com vários instrumentos classificados de tesouros nacionais”, elenca três alternativas para o seu realojamento: o Palácio das Laranjeiras, “ligado à história da música” através da intervenção do Conde de Farrobo; o Palácio Foz, que chegou a ser considerado para sede do museu, e o Palácio Pombal, na Rua do Século, “abandonado e desocupado”, que valeria pela sua “proximidade ao Conservatório Nacional”.
O grupo sublinha também a ligação histórica do museu à cidade e a “importância da educação patrimonial” que vem desenvolvendo através de concertos e conferências e da participação da comunidade universitária em trabalhos de investigação. Nos últimos anos, o museu acolheu 90 estágios e nunca uma vaga ficou por preencher.
O tabu da humidade
Christian Bayon, luthier francês radicado em Lisboa que colabora – gratuitamente – com o Museu da Música desde a sua instalação no Alto dos Moinhos, não esconde a sua desaprovação em relação à mudança para Mafra. O também curador recorda “os três anos que a coleção passou na cave do Convento de Mafra” como um período de que não ficou “de todo uma boa recordação”.
O artesão aponta a humidade como sendo o maior problema do espaço e sublinha ser preciso garantir “que se consegue controlá-la", pelo menos "a 50%”. Mais do que tudo, o francês aspira a uma nova localização "que não ponha em causa os instrumentos e que mantenha o museu vivo”. Bayon acredita que Mafra irá afastar os visitantes e que a distância de Lisboa esmorecerá a atividade cultural do museu.
“O sítio onde está o museu atualmente não é ideal”, reconhece, mas encontrar uma alternativa em Lisboa “teria um potencial de visita que Mafra não tem”. Para Christian Bayon, a ida para Mafra é “um passo atrás”. “São decisões políticas”, resume.
João Vaz, organista e professor universitário ligado à génese do Museu da Música – juntamente com João Pedro d’Alvarenga, foi um dos responsáveis pela instalação da exposição temporária em 1994 –, contrapõe que "a solução de Mafra oferece a possibilidade de acolher toda a coleção do museu de uma maneira definitiva". O também consultor do restauro dos seis órgãos da Basílica de Mafra lembra que sempre se soube que um dia o museu teria de sair do Alto dos Moinhos e que não surgiu até agora "nenhuma alternativa de um espaço que pudesse", como Mafra, albergar a totalidade do acervo.
O argumento da distância, desmonta-o em poucas palavras: “Quem pensa que levar o museu para Mafra irá provocar a sua morte são pessoas que há muitos anos não vão lá.” O organista chama a atenção para as transformações que a vila sofreu ao longo dos últimos dez anos, e “não só em termos de acessibilidades”, e aponta também as “obras em torno do palácio”. Essas mudanças fizeram do Palácio de Mafra “um monumento de primeira”, reforça.
Em fevereiro de 2017, foi entregue à Comissão Nacional da UNESCO o dossier com a candidatura de Mafra a património mundial. O dossier propõe que o Estado Português candidate o conjunto que engloba o Real Edifício (palácio, convento e basílica), todo o perímetro da Tapada Nacional e o Jardim do Cerco. A efetivar-se a classificação deste núcleo, o palácio ganhará uma nova visibilidade e atrairá ainda mais público. De acordo com os últimos dados da DGPC, o Palácio de Mafra recebeu 340.695 visitantes em 2018; no mesmo período, o Museu da Música foi visitado por 16.043 pessoas.
Sobre a necessidade de alterações, João Vaz diz que “qualquer edifício tem de ser sujeito a obras para receber o espólio de um museu”. E se Mafra ficou na memória como um local que danificou a coleção nos tempos em que lá esteve depositada, é algo que também aconteceu noutros locais por onde ela passou.
Governo quer descentralizar
A diretora do Museu da Música, Graça Mendes Pinto, garante que ao longo dos anos foram desenvolvidos “vários estudos técnicos de pré-projecto para a instalação do museu no Palácio de Mafra”, em que foram tidas em conta “as necessárias condições ambientais para a preservação da coleção, que conta com 11 tesouros nacionais”. Até à sua transferência, garante ao PÚBLICO, o museu não encerrará, uma vez que a extensão da cedência do espaço no Alto dos Moinhos não tem uma data-limite. Com a assinatura do protocolo, explica a responsável, "precaveu-se o tempo necessário para se efetuarem os devidos trabalhos" nas futuras instalações.
Em resposta às questões endereçadas pelo PÚBLICO, o MC reitera que “Mafra reúne todas as condições” e que as exigências da transferência têm vindo a ser analisadas desde 2013. Numa lógica de “promoção da descentralização e do reforço da coesão territorial”, a localização escolhida é a mais pertinente, argumenta o Governo.
À tese de que Mafra não tem vínculo com o passado musical nacional, a tutela contrapõe que a presença dos seis órgãos de construção portuguesa, do conjunto de carrilhões que se encontra atualmente em restauro e do acervo de obras musicais depositado na biblioteca “permite construir um discurso museológico coerente”.
A nova casa do Museu da Música será a ala norte do Palácio Nacional de Mafra, aquela que oferece maior "estabilidade" (em termos de humidade relativa e temperatura) ao longo do ano, detalha o ministério, atendendo às preocupações levantadas sobre essa matéria.
Os corredores dessa ala que pertenceu ao exército, e que ao longo dos anos serviu como caserna, estendem-se por largas centenas de metros, o que dotará o museu de uma área expositiva muito maior do que a de que hoje dispõe no Alto dos Moinhos e permitirá “apresentar em contexto muitas peças das várias secções dos seus acervos”, nota Graça Mendes Pinto.
Atualmente, o museu tem exposta apenas 20% da sua coleção de instrumentos. O espaço também só permite apresentar "algumas peças" do seu acervo fonográfico, documental e iconográfico, diz a diretora. Em Mafra, a realidade será outra.
A inclusão do Arquivo Sonoro Nacional no novo espaço do museu poderá também ser uma possibilidade. No início de Fevereiro, Graça Fonseca anunciou no Parlamento a criação de uma equipa instaladora coordenada por Pedro Miguel Félix, investigador da Universidade Nova de Lisboa. O MC prevê que a sua instalação deverá “estar concluída no prazo máximo de três anos” e promete para breve a divulgação do plano estratégico deste novo organismo, sem detalhar onde ficará sediado.
Em Mafra, o Museu da Música espera ter à disposição “uma ampla e tecnicamente preparada sala com condições acústicas, boas condições na biblioteca e na fonoteca”, diz a diretora. Outra condição essencial, nota, é “uma boa climatização, para que toda a coleção seja preservada”. Graça Mendes Pinto acredita que com a mudança a instituição poderá finalmente integrar um maior número de técnicos superiores e contar com um reforço de assistentes técnicos, recursos que considera “essenciais” para o bom funcionamento do Museu da Música.
Apesar do seu otimismo, a responsável admite que a transferência exigirá a criação de “estratégias para que a boa convivência com os músicos e a comunidade ligada à música continue a dar frutos”, condição que diz ser essencial para que a coleção seja reconhecida, valorizada e procurada. A ligação com a comunidade académica e com as escolas deverá igualmente ser implantada para que o museu “continue a ser de todos”, sublinha.
Em Mafra, "tudo é uma maravilha"
Mário Pereira, diretor do Palácio Nacional de Mafra, não se estende nas palavras sobre a vinda do museu: sustenta apenas que Mafra é “um palácio que se vê ao longe e que se lê ao perto”. Enquanto diretor, não esconde o privilégio que tem ao passear-se pelo palácio, sublinhando que ali se encontram “dois dos mais importantes conjuntos daquilo a que se pode chamar património musical integrado”: a coexistência dos seis órgãos e de todas as peças exclusivamente compostas para eles, e os dois carrilhões, dois instrumentos "verdadeiramente notáveis".
No seu gabinete, Mário Pereira espelha no rosto o entusiasmo pelo palácio. Sobre os dois carrilhões que estão a ser intervencionados, relata uma história que resume o sentimento que nutre pela nova casa do Museu da Música. "Em tempos, um frade corresponde-se com a academia inglesa e instala aqui o primeiro pára-raios em Portugal", conta. Numa dessas cartas, ao falar da zona dos carrilhões, escreve: "Aqui tudo é uma maravilha. Quanto mais se conhece, mais se admira." É esse o caminho que acredita que o museu poderá fazer na sua nova morada.
Rui Vieira Nery, musicólogo, concorda que em Mafra o museu pode converter-se num centro muito interessante. Mas para isso “precisa de condições”. E, sobretudo, "de um investimento grande".
por Sebastião Almeida in Público | 7 de março de 2019
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público