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A primeira volta ao mundo continua a incomodar?

Os ministros dos Negócios Estrangeiros de Portugal e Espanha já vieram garantir que a candidatura da primeira circum-navegação da Terra a património mundial será feita, pelo menos, pelos dois países, mas isso não chegou para acabar com a polémica em torno desta viagem que começou há 500 anos. A que se deve tanto desconforto quando a história é só uma?

A tripulação jura fidelidade a magalhães depois do fracasso do motim no Porto de São Julião_ Stefano Bianchetti /Corbis via Getty Images


Se nos limitássemos a ler o que se tem escrito nalguns dos seus diários nos últimos tempos, facilmente diríamos que Espanha parece andar de mal com a sua História. Artigos de jornalistas e historiadores recuperam o passado em torno de dois acontecimentos com 500 anos — a chegada ao México das forças lideradas por Hernán Cortés e a partida da armada que, a mando de Carlos I e por força das circunstâncias, viria a completar a primeira volta ao mundo —, procurando dar-lhes uma leitura que é em boa parte devedora do delicado momento político que o país atravessa. E em ambos os casos a “polémica”, usemos esta palavra à falta de melhor, instalou-se.

Se no caso de Cortés (1485-1547) o desconforto é fácil de compreender, ainda que possa dizer-se que é fruto de uma leitura do passado repleta de preconceitos contemporâneos – como celebrar hoje um conquistador, um homem que está ligado a episódios brutais em que milhares de aztecas foram mortos? —, no da primeira circum-navegação da Terra, uma viagem que à partida não tinha esse objetivo, é preciso ir mais longe para tentar perceber a que se deve o incómodo. Um incómodo que leva a títulos como “Portugal tergiversa la história y borra al Império espanhol de la vuelta al mundo” (diário ABC) e “El Gobierno de Pedro Sánchez vende barata España en el quinto centenário de la primera vuelta al mundo” (El Mundo).

O quinto centenário da primeira circum-navegação do globo serviu já para alguns políticos da oposição criticarem o “descaso” com que o Governo liderado pelo secretário-geral do PSOE tem tratado as comemorações, acusando o executivo de Sánchez de nada fazer perante os projetos portugueses de candidatar a Rota de Magalhães a património mundial sem reconhecer devidamente o papel que nela teve Juan Sebastián Elcano (1476-1526), o basco que viria a completar a volta ao mundo em 1522, depois de substituir Fernão de Magalhães no comando das embarcações espanholas, na sequência da morte do navegador português nas Filipinas, um ano antes.

Candidatura conjunta

De facto, Portugal inscreveu há já dois anos a primeira circum-navegação do globo na sua lista indicativa de candidatos a património da UNESCO (sigla inglesa da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) — um pré-requisito indispensável para que qualquer bem possa aspirar a ser uma herança da humanidade — sem que Espanha fizesse o mesmo. E Portugal fê-lo sem que o nome de Elcano constasse da designação que lhe atribuiu. A promotora da candidatura à lista indicativa nacional, a Câmara Municipal de Sabrosa, chamou-lhe Rota de Magalhães. Primeira à Volta do Mundo e aquele que era então o seu presidente, José Marques, agora à frente da estrutura de missão responsável pelas comemorações do quinto centenário em Portugal, gostaria de a ver submetida à apreciação do comité da UNESCO, com Espanha e eventualmente outros países, até 2022.

Mas desde que se apresentou esta candidatura, e sobretudo desde que no início do ano começaram a surgir artigos mais ou menos inflamados nos jornais espanhóis, os ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois países, Augusto Santos Silva e Josep Borrell, vieram já dissipar quaisquer suspeitas sobre um eventual conflito diplomático de bastidores em torno da viagem de Magalhães e Elcano.

A 23 de janeiro, os dois ministros anunciaram em Madrid que haveria, efetivamente, uma candidatura conjunta. Santos Silva explicou que seriam dadas instruções aos embaixadores dos dois países na UNESCO para que coordenassem esforços, envolvendo ainda outros Estados tocados pela expedição e distribuídos por três continentes (América, África e Ásia). “Espero que fiquem dissipadas todas as dúvidas ou especulações sobre a descoordenação ou desacordos nas comemorações da circum-navegação Magalhães/Elcano”, disse, por seu lado, Borrell.

Dissipadas as dúvidas ou não, as críticas continuaram. “Cumprem-se demasiados quintos centenários para um governo que não tem uma noção clara da potencialidade dos feitos do passado?”, perguntava Jesús García Calero no ABC, no final de janeiro, quando Borrel e José Girao, o ministro da Cultura, apresentaram a estratégia para a afirmação da cultura espanhola no mundo em 2019, deixando de fora o quinto centenário de Cortés. Uma semana depois, a 5 de Fevereiro, num artigo intitulado Las mentiras de Portugal para apropriarse de la gesta de Magallanes Y Elcano”, o mesmo jornalista especializado em história naval escrevia: “O Governo espanhol, com ignorância e ingenuidade, ofereceu a Portugal metade das comemorações. Na realidade, a diplomacia portuguesa perdeu por completo o respeito por Espanha.”

Uma expedição de filme

Polémica feita à medida dos jornais, assim a classificaram alguns dos historiadores ouvidos pelo PÚBLICO desde o final de janeiro, esta “medição de forças” entre Magalhães e Elcano traduz uma abordagem nacionalista e anacrónica à História, algo que não faz qualquer sentido. Desde logo, defenderam os académicos, porque o feito que se reclama para um e para outro — a primeira volta ao mundo, ainda que Magalhães a tenha feito em duas etapas (primeiro viajou com os portugueses de Lisboa ao arquipélago das Molucas navegando para oriente e, depois, de Sevilha para as Filipinas rumando a ocidente) e Elcano em apenas uma — é fruto das circunstâncias rocambolescas da expedição, verdadeiramente dignas de um livro de ficção, de um filme de aventuras.

Esta circum-navegação envolve, ainda que em níveis bem diferentes, os dois reinos ibéricos, em constante interação na época moderna. Não restam dúvidas de que é, no entanto, um projeto espanhol que, nas palavras do historiador José Manuel Garcia, tem inequivocamente um “comissário científico português” — Fernão de Magalhães.

Magalhães propunha-se atingir as Molucas, as chamadas “ilhas das especiarias”, hoje pertencentes à Indonésia, viajando para ocidente, numa rota alternativa à então usada pelos portugueses, que navegavam para oriente, ao longo da costa africana contornando o Cabo da Boa Esperança.

Depois de D. Manuel I se ter recusado a apoiar tal projeto, antevendo que poderia ser desfavorável à coroa portuguesa, que então controlava a única rota marítima de acesso a este importante território produtor de cravo-da-índia (especiaria conhecida como “cravinho” e que valia o dobro da pimenta), Magalhães foi propô-lo a Carlos I de Espanha. Chegou a Sevilha em 1517 e no ano seguinte apresenta-se ao jovem rei, então com 18 anos, para dizer que seria possível chegar ao arquipélago das Molucas rumando a ocidente e que, pelos seus cálculos, aquelas ilhas estariam na área de influência que o Tratado de Tordesilhas (o acordo bilateral assinado em 1494 em que os dois reinos ibéricos dividiram entre si as terras “descobertas e por descobrir”, com o beneplácito do Papa) atribuía à coroa castelhana. E isto sem mencionar qualquer intenção de dar a volta ao mundo.

Em 1519 uma armada composta por cinco navios com bandeira espanhol — TrinidadVictoriaSan AntonioConcepción e Santiago — e 234 homens a bordo, de múltiplas nacionalidades mas sobretudo espanhóis, parte de Sanlúcar de Barrameda, perto de Cádis, com Magalhães no comando. Será ele a capitanear a frota até ser morto em batalha nas Filipinas. A ele se devem, por isso, as arrojadas decisões que tornaram possíveis feitos até ali inéditos — sem os seus conhecimentos de navegação e sem que se tivesse rodeado dos cartógrafos e cosmógrafos certos, sem a sua intuição e persistência, muito provavelmente não teriam encontrado o estreito que acabou por ficar com o seu nome e não teriam conseguido atravessar o oceano Pacífico, que se revelou muito maior do que o suposto.

Sob a liderança de Magalhães (os outros capitães eram Juan de Cartagena, Gaspar de Quesada, João Serrão e Luiz de Mendoza), a frota enfrentou as intempéries e o desconhecido e venceu a parte mais difícil da viagem. Mas Elcano teve a coragem e o mérito de, arriscando-se a encontrar os navios de D. Manuel e, com eles, a morte ou a prisão certas, ter regressado a casa pelo caminho mais curto, completando a volta ao mundo.

O navegador basco chegou a Sanlúcar de Barrameda com apenas 18 homens dos 234 que dali tinham partido três anos antes. Quase 90% da tripulação ficara para trás – uns mortos no mar ou em batalha, outros cativos, outros ainda abandonados à sua sorte em territórios inóspitos ou mandados executar por Magalhães na sequência de um motim no porto de São Julião, em abril de 1520, revolta em que Elcano teve um papel de relevo.

Seja como for, tanto Elcano como Magalhães estão profundamente ligados a esta expedição transoceânica que mudou o mundo, defende a esmagadora maioria dos historiadores. São figuras que agora todos ficarão a conhecer melhor ao longo dos próximos três anos, com celebrações em Portugal e Espanha, mas também noutros países tocados pela rota.

Quanto à história desta viagem, que se ensina de maneira diferente nos dois países, lembra Javier Martín del Barrio nas páginas do diário El País – um aluno português responderá Fernão de Magalhães à pergunta “quem foi o primeiro navegador a dar a volta ao mundo?”, ao passo que um espanhol dirá Juan Sebastián Elcano, nome desconhecido do seu colega do outro lado da fronteira —, continuará a alimentar a investigação académica e a imaginação dos ficcionistas.

Se Magalhães planeou a sua própria morte para não ter de contar ao rei de Espanha, no regresso, que as Molucas afinal ficavam do lado português; se era ou não um espião ao serviço de D. Manuel I; ou se outros navegadores e nobres portugueses planearam o seu assassinato para que não concluísse a viagem são apenas alguns dos ingredientes da lenda que à volta dele se foi construindo. Elcano terá, certamente, direito aos seus. E se o mundo hoje conhece mais o português do que o basco, isso deve-se, em boa parte, a um italiano, o escritor e marinheiro Antonio Pigafetta, que manteve um diário de toda a viagem e que estava entre os que regressaram a Sanlúcar de Barrameda, onde o Guadalquivir encontra o mar.

Em Relazione del Primo Viaggio Intorno Al Mondo, o relato publicado pela primeira vez em Paris em 1524-25, Pigafetta só fala de Magalhães. Mas como o italiano não é a única fonte histórica desta expedição que Portugal tentou boicotar e agora comemora — grande ironia dirão uns; natural dirão outros —, os méritos de Elcano, um homem que acaba ao comando por força das circunstâncias e cuja tenacidade o faz regressar a Espanha com os porões cheios de especiarias, não passam despercebidos. 


por Lucinda Canelas in Público | 3 de março de 2019
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público 

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