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Filme-sensação de Cuarón primeiro no cinema e só depois na Netflix

Afinal, Roma, o filme-sensação de Alfonso Cuarón, também vai poder ser visto no seu lugar "natural": as salas escuras de todo o mundo - e está a caminho dos Óscares - apesar de ser uma estreia Netflix.

O realizador Alfonso Cuarón durante as filmagens.


É mesmo verdade que o filme Roma, de Alfonso Cuarón, se vai estrear nas salas de cinema!... Eis o que seria, em princípio, uma "não notícia"... Afinal de contas, onde é que o filme haveria de ter a sua estreia? Pois bem, os tempos mudaram: Roma é uma produção da plataforma de streaming Netflix e, como já aconteceu com outros títulos da mesma origem, poderia nem sequer chegar às salas. Roma estreia-se hoje em Portugal e passa na Netflix no dia a seguir.

Em boa verdade, o esplendor visual e sonoro da realização de Cuarón só faz sentido numa sala escura: num mundo ideal (quer dizer, gerido por outros valores cinéfilos e mais ágeis noções de marketing), Roma poderia até ser mostrado, com eloquente ganho emocional e espetacular, no gigantismo sensual dos ecrãs IMAX. Mas não é uma mera questão de prioridades ou "gostos" que está em jogo: através do seu vertiginoso crescimento, a Netflix tornou-se uma entidade essencial na discussão dos modos de existência dos filmes, da sua produção à decisiva problemática da sua difusão.

Convém não esquecermos que estamos a falar de uma entidade que possui mais de 130 milhões de assinantes em 190 países (os respetivos serviços de streaming arrancaram em 2007, nos EUA; em Portugal, a Netflix começou a operar em 2015). E que se foi transformando numa poderosa máquina de produção, de séries como House of Cards eNarcos, até filmes como Okja, aventura fantasista dirigida pelo sul-coreano Bong Joon-ho, ou O Outro Lado do Vento, obra póstuma de Orson Welles cuja difusão se iniciou a 2 de novembro.

Tudo isto tem abalado o edifício global do cinema, num processo que está longe de ter encontrado a sua estabilidade - para o melhor ou para o pior, não tenhamos dúvidas de que as perplexidades e polémicas em torno da Netflix vão continuar a determinar a produção e circulação dos filmes. Lembremos apenas que as produções da Netflix não estiveram no último Festival de Cannes, já que este, ecoando os interesses dos exibidores franceses, tentou encontrar, sem sucesso, um modelo de compromisso que garantisse o lançamento desses filmes nas salas de França. Efeito prático (e perverso): a Netflix retirou-se da Côte d'Azur, foi recebida de braços abertos pelo Festival de Veneza... e Roma ganhou o Leão de Ouro!

Que está, então, a acontecer? Digamos, para simplificar, que a Netflix não quis perder o comboio da temporada de prémios e, sobretudo, a possibilidade de estar nos Óscares - com toda a legitimidade, entenda-se. Ora, para que tal aconteça, o filme tem de surgir para além dos circuitos da net (leia-se: nos cinemas dos EUA).

Assim, para garantir as mais que prováveis nomeações, incluindo a de melhor filme estrangeiro (os diálogos não são em inglês, mas em espanhol e no dialeto mixteca), Romafoi programado para cinco dezenas de salas dos EUA, isto depois de já se ter estreado numa centena de cinemas mexicanos. Ao mesmo tempo, está a ser lançado em muitos outros países, incluindo Portugal (segundo notícia do Variety, ao longo do mês de dezembro estará presente em cerca de 600 salas de todo o mundo).

Recorde-se que, entretanto, Roma já está nomeado (é mesmo o grande favorito) na categoria de Globo de Ouro para o melhor filme estrangeiro. Aconteça o que acontecer, há uma certeza incontornável: com a sua impressionante carteira de títulos (incluindo, por exemplo, a mais recente realização dos irmãos Coen, distinguida, também em Veneza, com o prémio de melhor argumento), o "fator" Netflix deixou de ser um fantasma do cinema, para passar a existir como um elemento muito concreto - económico, artístico e simbólico - da sua evolução.

E não será preciso grande esforço de adivinhação para garantir que, no dia 24 de fevereiro, na cerimónia dos 91.º prémios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, Alfonso Cuarón subirá ao palco do Dolby Theatre, em Los Angeles, para receber o Óscar de melhor filme estrangeiro. Entre os agradecimentos, ouviremos a nova palavra mágica: Netflix.

A galáxia íntima de Alfonso Cuarón 

Pode a experiência de um filme comparar-se à odisseia visceral e secreta de uma gravidez? O leitor que não se assuste; a pergunta parece absurda, mas o seu sentido está bem espelhado em Roma. Esta que é sem dúvida a obra mais madura e íntima de Alfonso Cuarón, vencedora do Leão de Ouro em Veneza, centra a sua duração simbólica quase exclusivamente nos meses de gestação da protagonista, Cleo. E, à semelhança desse movimento interno, talvez aquilo que melhor define a relação do espectador com as texturas do filme é a sensação de estar dentro de um ventre metafórico, onde tempo e espaço se condensam nesse microcosmo protegido por alguém - embora sempre vulnerável às tragédias do mundo lá fora... É mais ou menos isto. E logo por tal aspeto sensorial, importa fazer a ressalva: apesar do selo da plataforma digital Netflix, este é um filme para se ver no esplendor do grande ecrã e, se possível, na conjuntura técnica otimizada (som Dolby Surround 7.1).

Tratando-se de uma crónica pessoal do realizador mexicano, o lugar que Cleo (Yalitza Aparicio) ocupa nas suas recordações de infância é o que torna a abordagem de Roma tão sui generis. Ela é a jovem criada da família, que equilibra perfeitamente a sua condição ao integrar-se na convivência doméstica, sobretudo com as crianças (a personagem de Cuarón é o mais novo), sem nunca comprometer o seu lugar na hierarquia social. Exemplo disso é que, quando as discussões familiares explodem à sua frente, ela, silenciosa, dá sempre um passo atrás em respeito à ferida aberta dos outros.

Estamos na Cidade do México, no início da década de 1970, e Cuáron fixa-se nos gestos e circuitos quotidianos desta mulher, para através dela fazer passar para nós a atmosfera de um tempo, que tem menos que ver com uma expressão da nostalgia do que com os detalhes mais recônditos da memória individual. E se tudo começa com a câmara apontada ao chão do pátio da casa que Cleo lava - em que correm os créditos de abertura do filme -, aquilo que sucede entre este plano e o plano final, com a câmara já apontada ao céu, é da ordem da epopeia privada. Aliás, é neste paradoxo que reside a intensidade dramática e visual de Roma: Cuáron filma a intimidade com uma lógica de grande escala, como se quisesse fazer um épico das lembranças sussurradas pelo coração.

Assim, seguimos os passos desta figura pacata e magnetizante - que em qualquer outro filme seria uma personagem secundária -, acabando por admirá-la tal como as crianças da casa que correm para os seus braços à procura de amor. Mesmo quando ela engravida por descuido e fica receosa pelo futuro, é no seu colo e no seu esforço diário que a família, à beira da desintegração, se apoia. E aqui Roma ganha a feição de um conto no feminino, na medida em que tanto Cleo como a patroa (Marina de Tavira) lidam com o abandono dos seus homens... Será também por esta razão que Cuáron disse que o filme era um tributo às mulheres da sua vida.

De resto, o carácter genuíno da autoria de Alfonso Cuarón sobre Roma não se cinge à realização e ao argumento original. Pela primeira vez, este acumula também a direção fotográfica do seu próprio projeto, encontrando no uso do preto e branco uma espécie de efeito disciplinador face ao caos no interior das imagens. Isto porque em cada plano do filme Cuarón tenta não recortar a experiência, mas sim abarcar o contexto integral das cenas. Veja-se, por exemplo, aquela em que Cleo está no cinema com o companheiro, no momento em que lhe vai contar que está grávida - aqui Cuarón divide o ângulo visual entre essa situação e o que está a acontecer no ecrã da sala de cinema (onde é exibido A Grande Paródia, de Gérard Oury), dando duas frentes narrativas a escolher ao espectador. E ainda noutra cena que volta a decorrer dentro da sala escura, a lente imerge no filme projetado no grande ecrã, Perdidos no Espaço (1969), de John Sturges, claramente a sugerir que foi uma das influências do seu anterior Gravidade (2013). Não será por acaso que Roma surge igualmente aos nossos olhos com um brio técnico e uma suavidade espacial que remete para a ideia de estarmos a fazer parte da galáxia íntima do realizador.

A propósito, o título Roma tem tudo que ver com isso. É o nome do bairro onde Cuarón viveu em criança, e cuja referência óbvia à capital italiana sublinha a grandeza que se pretende atribuir ao lugar, que encerra um encanto confidencial. Mesmo que esse encanto coexista com a violência, como é mostrado na recriação do massacre de Corpus Christi - que aconteceu na sequência de um movimento estudantil, em 1971 -, uma das cenas-chave que cruzam a história privada com o panorama social de uma maneira pungente.

E voltamos ao essencial: no centro de tudo está Cleo, personagem que na vida real se chama Libo. É a esta mulher de origem mixteca que se ergue o monumento chamadoRoma. A sua discreta gravidez é uma comovente viagem, e um dos melhores filmes de 2018.




por Inês N. Lourenço e João Lopes in Diário de Notícias | 12 de dezembro de 2018
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Diário de Notícias

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