"É de Cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos que vos quero falar"

Notícias

Parque Mayer: o teatro de revista ou um sonho português

Com o seu Parque Mayer, António-Pedro Vasconcelos procura reencontrar a simplicidade, genuína e contagiante, de um cinema enraizado no imaginário popular.

Foto: DR


Perversa coincidência: na mesma semana em que chega às salas o novo filme de António-Pedro Vasconcelos, Parque Mayer, acontece também a estreia de O Livro de Imagem, de Jean-Luc Godard. Tempos houve em que António-Pedro Vasconcelos, em sintonia com outras personalidades emblemáticas do Cinema Novo português (recordo a presença admirável dessa geração no Jornal de Letras e Artes, no período 1963-70), celebrava o autor de O Acossado (1959) ou Pedro, o Louco (1965), dois títulos também atualmente em reposição, como modelo exemplar de uma atitude crítica - todos, em França e Portugal, se distinguiram na crítica de cinema - empenhada em preservar uma memória dos clássicos que não excluísse, antes pelo contrário, favorecesse um continuado labor de reinvenção de linguagens e narrativas face aos novos dados do nosso viver em sociedade. As coisas mudaram, e muito, e é público o afastamento de António-Pedro Vasconcelos em relação aos métodos e valores que têm comandado a obra godardiana nas últimas décadas.

Não quero esconder que O Livro de Imagem (até por aquilo que dele não sei verbalizar) me parece, de longe, o título mais importante que este ano chegou ao mercado português. E espero que se compreenda que tal perspetiva não envolve qualquer dúvida em relação à legitimidade e coerência do pensamento de António-Pedro Vasconcelos - honra lhe seja feita, num universo mediático (incluindo a Internet) dominado pela redução do cinema a um fenómeno fútil e pitoresco, ele é um dos que não desiste de pensar o cinema a partir de uma genuíno amor pelas imagens e pelos sons.

Perversamente, insisto, é possível reconhecer que, em última instância, as trajetórias contrastadas de Jean-Luc Godard e António-Pedro Vasconcelos se cruzam numa mesma melancolia cinéfila: o primeiro, não desistindo de afirmar o cinema como uma forma de habitar o presente em que se tenta partilhar com o espectador a necessidade, de uma só vez ética e estética, de olhar o mundo à nossa volta para além dos clichés da globalização; o segundo, insistindo na possibilidade de reencontrar um cinema de raiz popular que, além do valor primordial da memória, resista a diluir-se nas misérias televisivas que continuam a contaminar alguns objetos de cinema em nome daquilo que seria o "gosto do povo".

Na simplicidade do seu dispositivo dramático, organizado com assinalável depuração pelo argumento de Tiago Santos, Parque Mayer é, curiosamente, um filme que não tem receio de voltar a convocar essa referência tão vilipendiada pelo imaginário telenovelesco e pelos horrores da Reality TV. A saber: o povo.

Saudemos, por isso mesmo, um filme que arrisca recuperar as referências do teatro de revista e do Parque Mayer para nos relembrar que existe aí um património expressivo e simbólico há muito secundarizado pelos poderes políticos e culturais dominantes. Não é essa a questão do filme (nem deste texto), mas a cruel decomposição de referências emblemáticas da cidade de Lisboa - desde a Feira Popular ao Parque Mayer, passando pelo belíssimo cinema e teatro Monumental, destruído em 1984 - é reveladora da indiferença de muitos decisores políticos em relação ao corpo vivo da cidade.

Parque Mayer é, assim, um filme contra essas práticas de apagamento e esquecimento. E tanto mais quanto situa a sua ação no começo da década de 1930, com todos os sinais emergentes do Estado Novo e dos valores culturais do salazarismo. Por uma vez, aliás, tais referências escapam ao esquematismo pueril de outras representações da mesma época (em cinema e televisão). Repare-se, em particular, no modo como as referências à censura, mesmo contaminadas pelo gosto caricatural (e, afinal, no melhor sentido, revisteiro) que perpassa por todo o filme, surgem para além da mera oposição entre a "maldade" dos censores e a "virgindade" dos seus alvos - o drama de Mário, o autor da revista dentro do filme (brilhante composição de Francisco Froes), desenha-se mesmo a partir da possibilidade ou impossibilidade de incluir nos seus diálogos determinadas palavras ou ambiguidades semânticas.

A certa altura, em O Livro de Imagem, uma voz questiona: "Ainda te lembras como, noutros tempos, desenvolvíamos o nosso pensamento? A maior parte das vezes, partíamos de um sonho..." Atrevo-me a fazer eco da sugestão godardiana para dizer que, na sua solidão, Parque Mayer é um filme apostado em devolver ao espectadores a possibilidade de pensar e sonhar através do cinema que se faz em Portugal. Não é pouco. Acima de tudo, em tempos de crescente populismo televisivo, tal hipótese deve ser defendida e acarinhada.


por João Lopes in Diário de Notícias | 6 de dezembro de 2018
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Diário de Notícias

Agenda
Ver mais eventos

Passatempos

Passatempo

Ganhe convites para a antestreia do filme "Memória"

Em parceria com a Films4You, oferecemos convites duplos para a antestreia do drama emocional protagonizado por Jessica Chastain, "MEMÓRIA", sobre uma assistente social cuja vida muda completamente após um reencontro inesperado com um antigo colega do secundário, revelando segredos do passado e novos caminhos para o futuro.

Visitas
93,844,251