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O Centro Cultural de Belém encomendou uma obra-prima e isso foi uma dor de cabeça para a Mala Voadora
Construída para as comemorações oficiais do 25.º aniversário do CCB, Fausto é uma peça no limiar entre a ficção e a realidade: uma companhia de teatro tenta ultrapassar os problemas levantados pela aproximação de uma estreia (entre os quais o problema inusitado do excesso de meios). Está em cena de 5 a 8 de dezembro.
Por vezes, tal é a zona de fronteira entre realidade e ficção em que a companhia Mala Voadora voluntariamente se atasca, não é fácil perceber se Jorge Andrade fala do processo de construção de um espetáculo ou do próprio espetáculo. No caso de Fausto, criação oficial de comemoração do 25.º aniversário do Centro Cultural de Belém (CCB), em cena no Grande Auditório entre 5 e 8 de dezembro, nem sempre é claro se as reuniões com a administração do CCB, o Ministério da Saúde ou o Exército pertencem ao domínio da fantasia. E isto porque Fausto, título que tem tanto de empréstimo a Goethe quanto de alusão à celebração faustosa que a ocasião exigia, leva para cena a própria hipótese teórica de a Mala Voadora avançar para uma montagem da peça homónima do autor alemão, projeto que por razões várias vai derrapando até tropeçar e acertar em cheio no Orçamento do Estado.
Quer isto dizer que o espetáculo a que assistimos debate-se, a cada instante, com as necessidades de produção que “a encomenda de uma obra-prima” por parte de uma instituição como o CCB acarreta. No início, aquilo que temos é um direto televisivo que dá conta da falhada estreia da peça, elevando o acontecimento a escândalo nacional. Tudo devido à tal derrapagem orçamental – que, em Fausto e na vida real, se chama antes “redimensionamento do espetáculo”. Só que o redimensionamento aqui, ao contrário do que costuma acontecer nas artes, significa que há cada vez mais meios. E tal é a ambição do espetáculo que a Mala Voadora se propõe fazer que a esses meios correspondem maiores necessidades materiais e humanas, constantes questões prementes relativas às remunerações, num dominó de problemas – comum ao dispositivo a que assistíamos em Moçambique e Amazónia, anteriores criações da companhia – que torna o espetáculo uma questão de interesse nacional.
“O espetáculo acaba por não ter outro tema que não a resolução dos problemas”, reconhece Jorge Andrade, autor e encenador, ao PÚBLICO. “Aquilo que eu queria, e que tinha ficado presente desde o início e não sabia muito bem como concretizar, era que ao pensar num espetáculo faustoso pudesse englobar o país todo. Depois acabei por diminuir essa ideia até ficar só em Belém.” Acontece que, em Fausto, todo o país parece caber em Belém, ou até mesmo no CCB. As dificuldades de produção que implicam a intervenção dos ministérios da Saúde, da Defesa e do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social – conhecidas que são as dificuldades próprias do Ministério da Cultura, numa boutade implícita à forma como muitas vezes falha ao sector – acabam por obrigar a uma consulta em que o povo português é chamado a pronunciar-se sobre a alocação de 20% do Orçamento Geral do Estado (com direito a uma pequena participação na peça para todos os votantes no “sim”) para que Faustopossa realmente estrear-se.
A escala cada vez mais desmedida de Fausto leva também à requisição de monumentos como a Torre dos Clérigos, o Palácio da Pena ou a Ponte D. Luís, chamados a servir de cenário do espetáculo. Num ecrã lá atrás, o rodapé anuncia “monumentos nacionais desmantelados para cenário de José Capela [cenógrafo e fundador da Mala Voadora]”. Não é por acaso que há um grande ecrã em cena, os jornalistas ampliados, rodeados de um povo quase liliputiano, numa sugestão deliberada de uma ditadura – da imagem, da narrativa oficial, do discurso mediático. E também não é por acaso que são vários os momentos de reportagem que irrompem na peça: trabalhando sobre a linha ténue entre verdade e ficção, Jorge Andrade convoca para este Fausto a espectacularização das notícias – há um cameraman que pede a repetição da entrada em palco de um adereço para poder registá-lo num plano mais eficaz, ajustando a narrativa à realidade que melhor serve as suas necessidades – e o clima de constante manipulação dos factos em que hoje nos vemos enfiados. Também aqui a verdade não tem a cotação em alta e a ciência é despachada como uma verdade relativa.
“Este espetáculo fala muito disso, de como se espetaculariza, e de como esta confusão entre ficção e realidade leva a um desespero tal que as pessoas votam a alocação de 20% do orçamento para aquele espetáculo precisamente por não saberem para que serve. E um bocadinho também por quererem fazer parte.” E é assim que, aos poucos, todo o país parece precipitar-se para Belém, como se quisesse testemunhar o desastre de Fausto na primeira fila. Em resposta, são levantados muros que condicionam o acesso à nova Zona Exclusiva de Belém, num palco tomado por betoneiras e ranchos folclóricos, caixotes do lixo e claques de futebol, mas em que é sempre difícil descortinar os artistas (os actores são, a propósito, Anabela Almeida, Carla Bolito, David Pereira Bastos, João Vicente, Manuel Moreira, Marco Mendonça, Maria Ana Filipe, Mónica Garnel, Tânia Alves e Vítor d’Andrade).
Já perto do final, alguém descobre o guião do espetáculo, condenado a adiar-se e a gastar o tempo que devia ser de pesquisa e de ensaio a resolver questões orçamentais e logísticas, e não propriamente artísticas. Qualquer semelhança entre realidade e ficção é aqui, como se imagina, propositada. O grande desafio é mesmo perceber onde começa uma e acaba a outra. Ou até o quanto ainda podem ser tratadas como entidades distintas.
por Gonçalo Frota in Público | 5 de dezembro de 2018
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público