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Carminho quis ser apenas Maria numa viagem a depurar o fado

Depois do disco onde deu voz própria a canções de Tom Jobim, Carminho voltou ao fado, num disco íntimo e produzido por ela, onde a maioria dos temas levam a sua assinatura. A partir de sexta-feira nas lojas, Maria, título que é também o seu primeiro nome, simboliza a máxima depuração que conseguiu, num exercício arriscado de onde saiu a ganhar. Ela e todos nós.


O exercício era arriscado, mas foi ganho. Depois da aventura que foi dar voz própria a temas de Tom Jobim, Carminho quis voltar ao fado mas depurando-o, para ver até onde conseguiria ir sem se afastar da matriz. “Foi uma coisa muito íntima, muito pessoal”, diz Carminho ao Ípsilon. Por isso deu-lhe nome de Maria, mas não simplesmente, porque essa busca obrigou a uma reflexão mais profunda sobre o que o fado representava para Maria do Carmo de Carvalho Rebelo de Andrade, nascida em Lisboa em 20 de agosto de 1984, filha da fadista Teresa Siqueira e conhecida nos meios fadistas por Carminho. O resultado, em cuja capa ela surge como que a levantar um véu, chega hoje às lojas. Tem três guitarristas diferentes, consoante os temas (Bernardo Couto, José Manuel Neto e Luís Guerreiro), viola de fado (Flávio César Cardoso), baixo acústico (José Marino de Freitas), piano (apenas na faixa final, João Paulo Esteves da Silva), pedal steel guitar (Filipe Cunha Monteiro) e guitarra elétrica (Filipe Cunha Monteiro e a própria Carminho).

Respeitar a emoção

“Eu queria fazer um disco de fado. E comecei a pensar, num sentido mais filosófico, para onde é que o fado tem ido, de onde veio, para onde tem caminhado, o que tem feito. Porque eu, desde pequenina, ao mesmo tempo que comecei a falar comecei a cantar fado.

Agora quis fazer o exercício de perceber o que era o fado para mim, o que é que me tinha ensinado, o que é que me tinha dado. E quais eram os valores primordiais, para mim, no fado. Para construir um disco de fado, mas contemporâneo, um disco meu.” Concluiu que o fado é cada vez mais uma soma de elementos, equiparado às camadas de uma pintura, e decidiu experimentar o inverso: “Uma subtração de elementos, para saber até onde eu subtrairia de modo a que continuasse a ser fado. Se eu continuar a subtrair, onde é que o fado mora? De alguma maneira, mora numa voz; que seja fadista, e dessa linguagem.”

Por isso o disco começa inteiramente a capella, com um fado que ela escreveu, letra e música, A tecedeira, mas onde se consegue quase adivinhar o som dos instrumentos que lá não estão. “Porque o fado mora numa energia, tem de respeitar algumas regras mas as da emoção, não necessariamente a das experiências, que tanta gente faz e muito bem.” A essa introspeção seguiu-se, ao planear o disco, o exercício de juntar o indispensável para procurar a cor própria para o que delineara. “Agora que tenho uma voz, que elementos vou somar para compor as matrizes que constituem este disco, a voz, o ambiente? A casa de fados também tem um som, um ambiente, que se perde ao vir para estúdio. Qualquer coisa que não é música mas que é musical.” Daí que neste disco, gravado “ao vivo” em estúdio, com todos a tocar ao mesmo tempo, haja um sopro, um ruído, que nalguns casos abre uma faixa. Ao ponto de um dos temas, Sete saias, soar a uma daquelas alternate takes que surgem em discos acrescidos de preciosidades dos arquivos: ela diz no início “Vai, Luís” (incentivando o guitarrista Luís Guerreiro) e no final suspira: “Uff”.

Resumindo: ela quis juntar a voz, o ambiente e o contar das histórias. “Senti que podia trazer qualquer coisa de novo desde que respeitasse a emoção que eu vi nascer, quando estava nessas noites de fado com os meus pais.” E essa coisa de novo passa pelo recurso a uma guitarra elétrica (que ela toca em Estrela, outra das suas composições) e pelo uso de uma pedal steel guitar, utilizada na música country. “Como é muito manipulada, com pedais e com arco, cria um ambiente e uma atmosfera que em nada desfaz, para mim, a atenção da guitarra portuguesa, da voz e do contar da história inerentes ao fado.”

Um grito de esperança

Os temas escritos por ela não surgiram só para o disco, já vinham de trás. “Os meus discos são sempre processos contínuos, de busca de repertório, de conhecimento de poesia (portuguesa, brasileira), de vários caminhos que me foram levando aos rumos que segui.

Mas gosto muito da fatalidade do acaso. Quando se está a trabalhar de dentro para fora, ou seja, daquilo em que se acredita para uma música que se faz ou um poema que se escolhe, há uma união de tudo isso. Acredito que a consistência mora aí.” Dois anos de estudo deram, assim, lugar a dois meses de estúdio. O arranque a capella não surgiu logo, mas na sequência do pensamento que deu forma ao disco. E à exposição nua da voz, onde se sentem as respirações com uma proximidade impressionante, segue-se, já com guitarra e viola, a sua extensão até ao grito, a partir das palavras de Pedro Homem de Mello, em Começo (no Fado Bizarro): “Principio a cantar para quem tenha/ fome de ouvir a música do vento.” A estridência da voz, única faixa do disco onde se tem essa sensação, é, diz Carminho, propositada. “Foi um suspiro de começar. Como se a tecedeira [e a sugestão de tecer, entrelaçar, é já significativa no gerar do tecido musical aqui proposto] estivesse num vácuo, num espaço zero, e esse Começo fosse um grito de esperança. Como diz a frase final: ‘Nascemos porque a dor é sempre nova/ E não há sofrimentos repetidos.’”

Além de A tecedeira, há mais três temas no disco integralmente escritos por Carminho, letra e música: Estrela, A mulher vento e Poeta. Além deles há dois com letra dela e música já existente, Desengano, de Jaime Santos (Fado Latino), e Se vieres, com música de Armando Machado (Fado de Santa Luzia); e ainda outro que ela musicou a partir de um poema de Reinaldo Ferreira, Quero um cavalo de várias cores, poema que já foi musicado e gravado por AP Braga, João Maria Tudella ou Frei Hermano da Câmara.

Comecemos por Estrela: “Foi uma música que compus nos Estados Unidos, numa tournée, e nem ia inclui-la no disco porque não tinha a certeza de conseguir entendê-la no conjunto deste pensamento. Só que um dia estava em estúdio, comecei a dedilhar uma guitarra elétrica e a cantar, estávamos numa pausa para café. De repente, o Artur [David] pôs a gravar e quando a ouvi percebi nela uma depuração e uma simplicidade que me fizeram hesitar. Era uma música minha, eu a cantar e a tocar ao mesmo tempo. Claro que há ali uma insegurança, mas ao mesmo tempo uma grande alegria.” Então voltou para dentro da cabina e tocou a canção do início. Gravou quatro takes, ficou o primeiro.

Há ainda, no disco, duas versões: Sete saias, de Artur Ribeiro, um malhão que ela trata a seu modo, mantendo-lhe apenas o essencial da estrutura reconhecível. E Pop fado, escrito por César de Oliveira com música de Fernando de Carvalho e gravado em disco por António Calvário, em 1966. “Liguei-lhe, ele ficou um bocadinho surpreso. Mas depois encontrámo-nos, ele é muito divertido, muito simpático. E o tema surge com uma espécie de jocosidade, brincar comigo mesma e com aquilo de que gosto. É uma discussão eterna e muito antiga, como se vê, ser pop ou ser fado, se andam ao estalo ou se andam a par.”

Escrever a cantar

Desengano, que é a bonança depois da tempestade de O começo, surgiu na estrada. “Por intuição, tudo o que escrevi para fados tradicionais já o escrevi com a música na cabeça. Eu escrevo a cantar, por causa da métrica das palavras. Um dia estávamos na estrada, e o Flávio [viola] estava a fazer um exercício com um tema de Baden Powell. Ouvi e pedi-lhe: ‘Pára! Toca o Fado Latino a fazer isso.’ Ele tocou e eu comecei a cantar por cima.”

Ser o terceiro tema no alinhamento foi uma opção consciente, diz Carminho: “Eu fiz o alinhamento com um sentido de álbum, de viagem. E porque é um disco de fado com uma viagem diferente, este Desengano vem ‘desenganar’ o continuar do disco.” Seguindo a sequência do disco, a próxima estação da viagem é O menino e a cidade, um dos dois temas que Joana Espadinha assina, letra e música (o outro é As rosas, a fechar o disco). “Quando eu estava a fazer o meu disco Carminho Canta Tom Jobim, há dois anos e meio, recebi uma mensagem de um amigo dos fados a dizer que uma amiga, do jazz, cantora e compositora, tinha feito um tema a pensar em mim.” Como estava muito embrenhada no disco, era muito complicado parar para ouvir. Mas, como tinha de dar uma resposta, lá arranjou um tempo. “Parei um bocadinho, fui ouvir e fiquei deslumbrada. Era ela a cantar, numa demo, com uma viola, e escrevi-lhe logo a agradecer.” Mas pediu-lhe se podia esperar dois anos, se podia guardar a canção. E ela deu-lha e esperou. “Agora, quando comecei a trabalhar neste disco, tirei-a da gaveta. Convidei a Joana para ir a minha casa, porque não a conhecia, e ela já trazia na pasta mais três ou quatro temas que tinha feito para mim. Aí vêm As rosas e mais outros temas que por acaso não entraram. E começou um processo muito feliz do encontro entre uma compositora e uma intérprete que se conseguem complementar e entender. Acho que esta relação vai continuar.”

A segunda canção de Joana, que fecha o disco, As rosas, foi pensada para voz e piano. “Ainda houve a ideia de ser só piano, mas eu quis introduzir o Filipe com a pedal steel guitar, tocada com o arco. Não é muito percetível, mas traz energia à canção.” Como um coro, ou um sopro de vento. E o piano de João Paulo Esteves da Silva dá-lhe uma envolvência magnífica, com a voz de Carminho a abraçar com amor as palavras: “Se as rosas são feitas para morrer,/ Quando se espalham no chão, onde vão? Quem serão?/ Algum dia minto pr’a te perdoar./ Ai meu amor, quem sabe o que eu chorei por ti.”

Ser a voz do vento

Mas é A mulher vento que melhor a retrata. Foi composta em Serralves, quando lá cantou com Marisa Monte. Carminho estava no camarim, Marisa a aquecer a voz e, como era dia ventoso, os vocalizos dela misturavam-se ao vento que fazia bater as portas. “A ideia, que começou a crescer dentro de mim, é a de uma mulher que está destinada a ser a voz do vento. E o mundo não vive sem o vento, porque o vento é essencial para acender as fogueiras, para levar os recados das que esperam do outro lado do mar, para levar as velas dos barcos, para trazer as notícias. E aquela mulher está confinada à missão de cantar o vento. E eu, no fim, talvez escolhesse ser essa mulher. Porque é o retrato de uma cantora que acaba por entregar a sua vida a algo que eventualmente possa ser maior do que ela.”


Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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