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Camilo Castelo Branco é material de prazer cinematográfico
Já se encontra nos cinemas O Caderno Negro, de Valeria Sarmiento, cinema português produzido por Paulo Branco com talento francês e chileno. Um pequeno grande feito em que Camilo Castelo Branco e a sua arte de folhetim resultam num filme conseguido.
Desbravar caminhos e atalhos no que diz respeito à métrica do folhetim no cinema. É isso que Valeria Sarmiento faz neste muito estimável O Caderno Negro, atirado ao mercado numa das mais concorridas semanas do mapa de estreias.
O filme chega a Portugal depois de uma passagem pelo Festival de Toronto e pela competição do cada vez mais vital Festival de San Sebastián. Esta produção de Paulo Branco adapta de forma livre Camilo Castelo Branco, Livro Negro do Padre Dinis, o romance que serve como prequela de Mistérios de Lisboa, em concreto a infância do Padre Dinis, aqui um órfão que é ajudado pela sua ama italiana, personagem que mais tarde vem a descobrir a origem do seu pai, um importante membro do clero.
Com um intriga que passa da França a Itália no crepúsculo do século XVIII, O Caderno Negro incorpora factos históricos como as convulsões da Revolução Francesa e a ascensão do General Napoleão Bonaparte. Dir-se-ia que é um tipo de filme contra-corrente, seguindo sempre um classicismo sereno e fiel a uma ideia vinculada de retrato feminino, neste caso o da ama protagonista, interpretada com uma tranquilidade majestosa por Lou de Laâge, porventura um dos grandes tesouros da representação francesa. Não é por acaso que a cineasta chilena afirmou em San Sebastián que hoje encetar uma crónica feminina com uma protagonista como esta não deixa de ser um gesto feminista. Apetece dizer que o gesto maior desta co-produção entre França e Portugal é o de acreditar num cinema sem tempo, capaz de se descrever através do princípio primitivo, mas sempre assaz vital, da importância de uma história bem contada.
Para as más línguas que vão condenar o filme pela sua inocência, convém sempre lembrar que é muito complicado numa obra como esta afastar todos os constrangimentos de ficção televisiva. O Caderno Negro, que será uma série, é cinema puro (mesmo que, na verdade, em breve, venha a ser uma série para a RTP). Tem uma fluidez desembaraçada e é um legítimo primo de Mistérios de Lisboa, de Raoul Ruiz, filme também produzido por Paulo Branco e com ajuda de Valeria Sarmiento. Aliás, o gesto mais bonito do trabalho da viúva de Ruiz é não fazer "à Ruiz".
Quem também acusar O Caderno Negro de ser um objeto "plano" está a esquecer-se que as subtilezas do argumento de Carlos Saboga resumem e reinventam o espírito camiliano. A sensação de contiguidade da trama é um mérito deste senhor que precisamente já tinha sido o herói da adaptação de Mistérios de Lisboa. Saímos da projeção com a certeza de que estas aventuras no tempo têm um dinamismo e um tom mais do que certos, mesmo com todas as mil e uma reviravoltas e surpresas da intriga. Esse é realmente o sinal mais bonito de uma parábola cética sobre o poder do "storytelling" no cinema contemporâneo.
Palavra ainda para as prestações pequenas dos atores portugueses. Pequenas mas preciosas, com óbvios destaques para Filipe Vargas, Catarina Wallenstein, Elmano Sancho, Joana Ribeiro e Victoria Guerra. Do pouco fazem muito...
por Rui Pedro Tendinha in Diário de Notícias | 13 de outubro de 2018
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Diário de Notícias