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A Festa do Cinema Francês, de Rappeneau a Clouzot, com muitas antestreias pelo meio

Organizado pelo Institut français du Portugal, o evento arranca em Lisboa, e espalha-se por mais 10 cidades até 11 de novembro. O clássico Cyrano de Bergerac faz as honras de abertura.

Gérard Depardieu é o fervoroso e romântico Cyrano de Bergerac de Jean-Paul Rappeneau© DR


Foi o papel que valeu a Gérard Depardieu uma indicação para o Óscar, e é a mais robusta produção da pouco extensa filmografia de Jean-Paul Rappeneau. Cyrano de Bergerac (1990) vai abrir a 19ª Festa do Cinema Francês, com a presença do realizador, e desta forma assinalar o reencontro com a célebre peça de Edmond Rostand, que é um dos tesouros da cultura francesa, aqui adaptada ao grande ecrã pela pena do próprio Rappeneau e de Jean-Claude Carrière. Esta é a história ficcionada do escritor e duelista do século XVII que, angustiado com o nariz comprido que lhe deforma o semblante e apaixonado pela sua prima Roxanne, decide aplicar a eloquência romântica tornando-se o autor fantasma das cartas de outro pretendente da amada, bem-parecido mas desinspirado, e escondendo o sentimento genuíno nos seus versos. Na pele desta fervorosa personagem, que alcança a medida perfeita entre a expansividade e a delicadeza, Depardieu é um corpo de emoções febris numa interpretação lapidada pela génese teatral. Filme de época com uma encenação venturosa e espetacular, Cyrano de Bergerac ganhou o estatuto de clássico (além de 10 Césares), e será apresentado amanhã numa cópia restaurada, na sala Manoel de Oliveira do Cinema São Jorge (21.30), sendo de seguida reposto nas salas portuguesas.



Como padrinho desta edição da Festa, Jean-Paul Rappeneau será ainda homenageado com a exibição de mais quatro dos seus filmes: o recente Que Famílias! (2015), em que Mathieu Amalric protagoniza a história de um regresso às origens; Boa Viagem (2003), com Isabelle Adjani; e duas comédias românticas com Catherine Deneuve, uma em França e outra na Venezuela, respetivamente, La vie de château (1966) e Le sauvage (1975). Quanto a Depardieu, para quem quiser conhecer novos trabalhos do ator é estar atento às antestreias de A Outra..., de Daniel Auteuil, sobre um editor parisiense fascinado com a mulher do seu melhor amigo, e Les confins du monde, de Guillaume Nicloux, drama de guerra protagonizado por Gaspard Ulliel.

Estes são apenas dois dos 27 filmes em antestreia no evento que decorre em Lisboa até 14 de outubro, e que passa por outras 10 cidades (Almada, Coimbra, Aveiro, Porto, Viana do Castelo, Leiria, Beja, Faro, Seixal, Setúbal) até 11 de novembro. De entre essas antestreias, que dão uma panorâmica da mais fresca produção cinematográfica francesa, destacamos Em Guerra, o novo filme de Stéphane Brizé, que depois de A Lei do Mercado (2015) volta a trazer Vincent Lindon para o centro de uma vívida realidade laboral, onde este interpreta o porta-voz dos mais de mil trabalhadores de uma fábrica que vai fechar; A Aparição, de Xavier Giannoli, mais uma vez com Lindon a liderar os destinos dramáticos da história, no papel de um jornalista enviado ao Vaticano para investigar o caso de uma jovem que se afirma testemunha de uma aparição da Virgem Maria; e Nada ou Afunda, comédia de Gilles Lellouche centrada nos treinos de natação sincronizada de um grupo de homens... Todos estes títulos já estão assegurados pela distribuição portuguesa.

Por sua vez, surgem outros como oportunidade única de visionamento (se não forem adquiridos entretanto pelos distribuidores): Plaire, aimer et courir vite, do multifacetado Christophe Honoré, que agora nos traz um romance homossexual ambientado nos anos 1990, e I Feel Good, loucura bem característica da dupla de realizadores Benoît Delépine e Gustave Kernvern, aqui a ir buscar contexto a uma comunidade Emaús, tendo Jean Dujardin como protagonista da aventura cómica. De referir também Le vent tourne, da suíça Bettina Oberli, drama rural sobre uma mulher cuja vida se altera com a chegada de um homem que vem instalar uma turbina eólica - esse homem é interpretado por um dos ilustres atores portugueses do nosso tempo, Nuno Lopes.



A Festa do Cinema Francês tem ainda um ciclo de cinema independente - chama-se ACID e, através de projeções seguidas de masterclasses, dá a conhecer realizadores pouco divulgados. Já a animação continua a ser uma marca de qualidade da produção francófona. Este ano temos, por exemplo, um novo filme do veterano Michel Ocelot, Dilili à Paris, que nos leva até à Belle Époque na capital francesa, e a média-metragem Ernest et Célestine en hiver, episódio extraído do universo desta dupla animada do urso Ernest e da ratinha Célestine, amigos improváveis.

Henri-Georges Clouzot em oito filmes

Como sempre, a preservação da memória dos clássicos franceses, na sua diversidade, é um dos pontos essenciais da programação da Festa, que no ano passado prestou tributo a Jean-Pierre Melville. Nesta 19ª edição o nome escolhido para uma retrospetiva foi o de Henri-Georges Clouzot (1907-1977), realizador de um autodidatismo notável cujos sucessos marcaram a cinematografia francesa dos anos 1940/50. Mas esta não é uma figura consensual no meio: tinha fama de ser um temível diretor de atores, e ficou manchado com a acusação de colaborar com as forças de ocupação alemãs; algo que estaria na base moral de uma certa tendência dos jovens críticos dos Cahiers du Cinéma para denegrir a sua obra. Mas o que está aqui em causa é o valor concreto dessa obra, e não os ecos que a rodeiam.

Numa parceria com a Cinemateca Portuguesa, que acolhe os oito filmes deste programa na sala Félix Ribeiro, vai ser possível redescobrir uma particular expressão da justiça dos homens, nomeadamente, em As Diabólicas (1955), com as protagonistas Simone Signoret e Véra Clouzot por trás de um plano de homicídio, ou nos policiais L"assassin habite...au 21 (1942) e O Crime da Avenida Foch (1947), este último encenado no ambiente de um teatro de revista. Sobre Le corbeau (1943), um dos títulos mais fortes e controversos desta filmografia - produzido durante a ocupação alemã, e com uma intriga sobre denúncias anónimas - o historiador Jean Tulard escreveu no Dictionnaire du Cinéma: "É como se Clouzot tivesse necessidade dos «anos negros» da ocupação para melhor exprimir essa visão pessimista do mundo que caracteriza uma obra colocada sob o signo do Mal."

Também o famoso road movie O Salário do Medo (1953) e o raro Manon (1949) - este em primeira exibição na Cinemateca - constam no ciclo, ao lado de mais dois documentários. Um é o impressionante Le mystère Picasso (1956), que filma o pintor no seu processo de trabalho, com banda sonora de Georges Auric. O outro, também inédito nas nossas salas, chama-se L"enfer d"Henri-Georges Clouzot (2009), e é assinado por Serge Bromberg, sobre esse filme inacabado - L"enfer - do realizador francês.




por Inês N. Lourenço in Diário de Notícias | 3 de outubro de 2018
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Diário de Notícias 

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