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Fotos explícitas, salas interditadas, diretor demissionário: o que se passa em Serralves?
Uma exposição com fotografias de Robert Mapplethorpe está a causar uma tempestade na Fundação Serralves, tendo já provocado a demissão do diretor do museu.
O diretor do Museu de Serralves, João Ribas, pediu sexta-feira a demissão e há também quem, no meio artístico, peça a demissão da administração da Fundação de Serralves, acusada de censura e de intervir na direção artística e curatorial do museu. A administração diz que a responsabilidade é do diretor, Ribas mantém o silêncio e entretanto o museu já alterou os avisos que tinha na exposição e agora permite a entrada nas salas reservadas a menores de 18 anos desde que acompanhados por um adulto. Essa informação está também no site oficial do museu.
Que exposição é esta?
A exposição Robert Mapplethorpe: Pictures inaugurou no dia 20 de setembro no Museu de Arte Contemporânea de Serralves no Porto. Foram anunciadas 179 obras do fotógrafo norte-americano (1946-1989) numa exposição que "cobre toda a carreira" e inclui colagens e polaroides do início da carreira do artista, que se situa nos anos 1969/1971, e passando por fotografias de flores, nus, retratos de artistas como Patti Smith, Iggy Pop, Arnold Schwarzenegger ou Richard Gere e dezenas de imagens sobre sexo, género e raça. No comunicado à imprensa sobre a exposição o museu sublinhava: "Mapplethorpe tratou todos os seus temas com igual atenção e precisão, desde órgãos sexuais ou arranjos de flores até aos retratos de amigos, amantes, celebridades e colaboradores, transformando a fotografia numa performance controlada entre o artista e o seu sujeito".
O que disse o curador João Ribas antes da inauguração?
Uma semana antes da inauguração, João Ribas, diretor do museu e curador da exposição, declarou ao jornal Público: "Considero que as pessoas têm o direito de serem confrontadas com coisas que saem das suas zonas de conforto, do mesmo modo que considero que não devem ser obrigadas fazê-lo. Ao mesmo tempo, tenho de respeitar a integridade do artista e estamos a falar de um grande artista da segunda metade do século XX. Temos de ter todos estes aspetos em consideração e para tal houve um trabalho curatorial. No fim, só me resta dizer que a exposição tem de ser experienciada."
O diretor do museu garantia ainda que na exposição de Mapplethorpe em Serralves não iria haver "censura, obras tapadas, salas especiais ou qualquer tipo de restrições a visitantes de acordo com a faixa etária". Apenas, escreveu o jornal, "um aviso sensato e informativo, colocado à entrada da primeira sala, para a existência de certos conteúdos".
Na véspera da abertura ao público, numa visita guiada para a comunicação social, questionado sobre se considerava que algumas imagens da exposição poderiam vir a surpreender ou até a chocar o público, João Ribas declarou que estas foram mostradas em dezenas de museus no mundo inteiro e que Mapplethorpe é "uma das grandes figuras da fotografia" e "um artista conceituado que continua a ser influente na fotografia contemporânea". "Houve muitas exposições com milhares de visitantes e acho que é uma das grandes figuras da arte contemporânea, não consigo fazer essa projeção", acrescentou, conta a Lusa, referindo que uma exposição tem sempre a função de despir o público de preconceitos.
É comum haver nos museus avisos quanto ao conteúdo das exposições?
"É um procedimento museológico recorrente e tradicional neste museu. Já tinha sido assim noutras exposições, como a de Nan Goldin em 2002", explicou João Ribas ao Público. "Trata-se de conceber o museu como instituição livre de possibilitar um encontro com a obra que Robert Mapplethorpe desenvolveu durante vinte anos. Defende-se o direito de as pessoas poderem ter essa experiência. Um museu não pode condicionar, separar ou delimitar o acesso às obras. De dizer o que as pessoas podem ver ou não."
Por exemplo, na exposição A Coleção Sonnabend. Meio Século de Arte Europeia e Americana. Part I que o Museu de Serralves apresentou entre maio e setembro deste ano havia uma sala especial e com um aviso à entrada quanto ao "conteúdo explícito" só para mostrar, em grande formato, a fotografia da artista porno Cicciolina a ser penetrada por um homem que é o próprio artista Jeff Koons, com quem ela foi casada. A obra chama-se Red Doggy (Canzana). A entrada nesta sala era permitida aos menores desde que com "acompanhamento por um familiar ou adulto".
Porque se demitiu o diretor do Museu de Serralves?
Um dia após a inauguração da exposição de Robert Mapplehorpe, 21 de setembro, surgiram as primeiras notícias dando conta do pedido de demissão de João Ribas do cargo de diretor do Museu de Serralves. Ao jornal Público, Ribas alega "já não tinha condições para continuar à frente da instituição".
Embora sem dar qualquer justificação, subentende-se que a demissão vem na sequência de outras notícias, surgidas nessa tarde, de que ao contrário do que o diretor tinha anunciado, o aviso inicial não se limitava a chamar a atenção para o conteúdo explícito das imagens mas limitava a entrada na exposição: "A admissão de menores de 18 anos está condicionada à companhia de um adulto."
Mais do que isso: cerca de 30 imagens foram colocadas em duas salas com entrada interdita a menores de 18 anos, mesmo que acompanhados. No aviso à entrada dessas salas podia ler-se: "Aviso. Alertamos para a dimensão provocatória e o caráter eventualmente chocante da sexualidade contida em algumas obras expostas. A admissão nesta sala está reservada a maiores de 18 anos." Essa interdição parece ser algo inédita.
Além disso, resta saber quem é que decidiu quais as imagens que deveriam estar nestas salas reservadas - foi o curador do museu ou foi a administração?
Surgiram depois informações na imprensa sobre a exclusão de 20 obras de Mapplethorpe: são apenas 159 as obras expostas e não as 179 inicialmente anunciadas.
Como reagiu a Fundação Mapplethorpe?
Numa visita guiada à exposição, no sábado de manhã, o presidente do Conselho de Administração da Fundação Mapplethorpe, Michael Ward Stout, afirmou que a demissão de João Ribas, diretor artístico do Museu de Serralves, foi "completamente inapropriada e pouco profissional", revelando ter ficado "chocado com a atitude".
"O João ligou-me e avisou que se ia demitir, mas provavelmente apenas quando acabasse a exposição, ou seja, daqui a alguns meses", adiantou Stout, dando a entender que o mal estar na instituição já se fazia sentir há algum tempo e que algo terá acontecido nestes dias que terá precipitado a decisão de João Ribas.
Questionado sobre o acesso restrito a menores de 18 anos, a duas salas da exposição, o diretor da Fundação frisou que a administração "apenas não queria que as fotografias mais desafiantes e 'chocantes' estivessem na galeria principal". "As exposições de Mapplethorpe passaram pelos mais proeminentes museus da Europa e este é um deles. Em muitos deles, incluindo o Hermitage, em São Petersburgo, o Grand Palais, em Paris, e uma série de museus americanos, foram deslocadas fotografias e colocadas em salas separadas, como aqui. Em alguns, os menores só podiam entrar acompanhados por adultos, outros limitaram a 14 anos, outros a 16. Nós nunca colocámos objeções. Nunca impusemos nenhuma regra. Se os museus, os seus diretores, os curadores sentirem que há imagens que devem ser exibidas separadamente, nós respeitamos", disse o responsável.
Porque é que 20 obras ficaram de fora da exposição?
Esse é um dos mistérios desta história. A primeira vez que se anunciou a exposição eram referidas 179 obras. No comunicado enviado à imprensa no dia 22, após o pedido de demissão de João Ribas, a Fundação de Serralves afirma: "A exposição "Robert Mapplethorpe: Pictures" é composta por 159 obras do autor, todas elas escolhidas pelo curador desta apresentação. A Administração de Serralves não retirou nenhuma obra da exposição."
Segundo Isabel Pires de Lima, a administração da fundação também não percebeu por que é João Ribas "excluiu 20 obras" da exposição. "Até nos preocupa um pouco porque pagámos o custo de mais 20 obras que não foram usadas", afirmou.
O presidente da Fundação Mapplethorpe. Michael Ward Stout admitiu que as fotografias "mais desafiantes estão presentes" no museu e que João Ribas "apenas removeu duas". "Não sei porque é que o João retirou as fotografias, não faz sentido nenhum. Não sei porque o fez, e porque o fez desta forma", acrescentou.
O que disse a Administração de Serralves?
No comunicado de dia 22, a administração garante que "desde o início, a proposta da exposição foi apresentar as obras de cariz sexual explícito numa zona com acesso restrito". E justifica: "Dado o teor de várias das obras expostas e sendo Serralves uma instituição visitada anualmente por quase um milhão de pessoas de todas as origens, idades e nacionalidades, incluindo milhares de crianças e centenas de escolas, a Fundação considerou que o público visitante deveria ser alertado para esse efeito, de acordo com a legislação em vigor."
Esta segunda-feira, Isabel Pires de Lima, um dos nove membros da administração, corroborou estas afirmações, explicando que "desde a primeira hora" tinha sido acertado que algumas obras seriam apresentadas à parte e desmentindo categoricamente as afirmações iniciais de João Ribas. E lembra ainda que João Ribas aceitou participar na inauguração da exposição, um evento que aconteceu na quinta-feira à noite, quando a exposição já estava montada, com as duas salas interditadas.
Pires de Lima reafirma também que a escolha das obras a expor foi da exclusiva responsabilidade do curador, sem intervenção da presidente da administração, Ana Pinho. "O João Ribas escolheu o que quis e a partir do momento em que escolheu muitas obras com conteúdo sexual explícito foi necessário criar uma zona de reserva, de que ele tinha conhecimento desde sempre", assegurou, dizendo não saber por que razão o curador deu uma entrevista onde afirmou que não haveria zonas condicionadas. "Isso, para nós, foi uma surpresa, como de resto lhe comunicámos", revelou.
Como reagiu a comunidade artística?
As reações a esta polémica não se fizeram esperar. No domingo, dia 23 de setembro, cerca de 30 pessoas manifestaram-se à porta do museu exigindo a demissão do conselho de administração da Fundação de Serralves. Numa carta aberta que ontem de manhã tinha já quase 300 signatários, os manifestantes afirmam ainda que "o Diretor Artístico não deveria ter permitido a prévia censura a uma exposição da qual assumiu a curadoria, mesmo que tenha sido coagido a fazê-lo", e que a exposição não poderia ter sido inaugurada desta forma.
"Há falta de coragem. Há medo no Museu", acrescentam, acusando a atual Presidente do Conselho de Administração de "transformar o Museu de Arte Contemporânea de Serralves num espaço acrítico". "Não queremos uma Administração que censura, mente e coage. Não queremos um Museu que não assegura o Estado de direito democrático nem os direitos fundamentais dos cidadãos (...). Este Museu também é nosso", afirmam na carta aberta.
O fotógrafo Daniel Blaufuks cancelou a visita guiada que deveria orientar a 24 de novembro "por considerar absolutamente inaceitáveis as noticias restrições na exposição do Robert Mapplethorpe".
Surgiu depois mais uma carta aberta, assinada por artistas, académicos e outros profissionais ligados ao setor, contestando a decisão da administração de retirar 20 obras de arte da exposição. Entre os mais de 400 subscritores estão o realizador João Pedro Rodrigues, os artistas João Pedro Vale e Nuno Ferreira, a historiadora Irene Flunser Pimentel, o coreógrafo João Fiadeiro, o curador Pedro Lapa e a artista Ana Vidigal.
O que está por esclarecer?
- Porque foram excluídas da exposição 20 obras e quem é que as excluiu?
- Quem determinou quais as 30 obras que deveriam estar em salas reservadas?
- Quem decidiu proibir categoricamente a entrada nessas salas a menores de 18 anos? - entretanto, os avisos à entrada das salas reservadas, foram alterados prevendo a entrada no espaço de menores desde que acompanhados por um adulto.
- Porque é que João Ribas, diretor do museu e curador da exposição, participou na inauguração na quinta-feira e se demitiu 24 horas depois?
por Maria João Caetano in Diário de Notícias | 24 de setembro de 2018
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Diário de Notícias