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Prémio Camões para Germano Almeida, o prosador irónico

O escritor Germano Almeida é o vencedor da 30.ª edição do Prémio Camões, uma decisão por unanimidade a distinguir um escritor que mudou a forma de escrever sobre Cabo Verde. Foi bolseiro do Centro Nacional de Cultura do programa Criar Lusofonia 2001.

Foto de Paulo Pimenta


“Estou feliz. É o reconhecimento do trabalho que a gente faz. Embora eu considere que escrever não seja trabalho, é prazer”, disse Germano Almeida ao PÚBLICO pouco depois de saber que era o vencedor da 30.ª edição do Prémio Camões, o mais celebrado prémio literário de língua portuguesa, no valor de 100 mil euros.

Aos 73 anos, o escritor natural da Ilha da Boavista, onde nasceu em 1945, é autor de uma vasta obra publicada em Portugal, toda ela escrita em português. “Para mim a língua portuguesa tem o mesmo peso que a língua cabo-verdiana. Sou filho de pai português e de mãe crioula, cresci com as duas línguas, mas aprendi a escrever em português e não pretendo começar a escrever em crioulo. Eu expresso a cultura cabo-verdiana usando a língua portuguesa”, referiu numa altura em que se discute o papel da língua crioula na literatura do arquipélago.

“Não sinto qualquer pressão pelo facto de só escrever em português”, afirma, acrescentando: “Cabo Verde tem uma necessidade imperiosa de cultivar a língua portuguesa porque é o nosso instrumento de contacto com o mundo.”

Depois do poeta Arménio Vieira, vencedor em 2009, Germano Almeida é o segundo escritor de Cabo Verde a receber o Camões, e sucede, numa decisão por unanimidade, ao português Manuel Alegre que o ganhou em 2017. O júri desta edição, presidido pelo brasileiro José Luís Jobim, salientou a ironia na obra de Almeida, uma obra, lê-se em comunicado, “onde se equilibram a memória, o testemunho e a imaginação, a inventividade narrativa alia-se ao virtuosismo da ironia no exercício de liberdade, de ética e de crítica. Conjugando a experiência insular e da diáspora cabo-verdiana, a obra de Germano Almeida, atinge uma universalidade exemplar no que respeita à plasticidade da língua portuguesa”.

Algumas destas características foram sublinhadas também por Luís Filipe Castro Mendes, depois de ter anunciado o nome do vencedor. “Ele tem uma característica muito interessante: uma auto-ironia benevolente. Não é o sarcasmo cruel e feroz de Camilo Castelo-Branco ou de Fialho de Almeida; está mais próximo da ironia de Eça de Queiroz, mas é uma ironia complacente e cúmplice. E é um escritor extraordinário na observação, na inteligência com que lê os acontecimentos e as motivações das pessoas. É muito criativo. É reconhecido, mas não só merecia plenamente este Prémio Camões, como merece ser mais conhecido, mais lido”, disse ao PÚBLICO o ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes.

Ao telefone a partir da ilha de São Vicente, onde vive, Germano Almeida revê-se nessa ironia. Não fala em benevolência, mas em complacência. “O meu olhar sobre Cabo Verde é meu, é o olhar do Germano, do cabo-verdiano. Há nele muita complacência e muita compreensão. Sou um homem profundamente cabo-verdiano, que ao escrever está a traduzir uma cultura. E o cabo-verdiano é um povo que apesar de todos os problemas, continua a manter um grande sentido de humor. Isso caracteriza-nos, mas há outra coisa: o amor e a esperança nunca morreram em Cabo Verde.”

José Luís Tavares, poeta, também cabo-verdiano, um dos jurados desta edição do prémio, fala de um escritor de mudança. “O Germano Almeida é hoje o escritor mais conhecido, mais popular de Cabo Verde. Ele deu uma volta à literatura cabo-verdiana. Antes dele ela refletia muito os dramas da seca, da fome, da emigração; de repente o Germano chega e começa a fazer uma literatura de sátira social, risível, que põe os cabo-verdianos a meditar sobre os seus problemas, mas de uma forma mais leve, mais irónica. Não deixando de fazer pedagogia, mas pelo riso e pelo escárnio.”

Uma literatura política?, perguntamos a Germano Almeida interrompendo a celebração lá em casa, onde estava com os filhos. “Há sempre um compromisso político; optar por contar esta história e não outra já é um ato político. Costumo escrever textos de intervenção nos jornais que têm um cadastro político, mas os textos literários não têm esse propósito. Mas tenho opiniões. Acho que a difusão da literatura cabo-verdiana depende muito do apoio que Estado cabo-verdiano conseguir dar, porque os autores não têm forma de se dar a conhecer no mundo. Esse é um dever do Estado, apostar e aproveitar circunstâncias boas. Devíamos, por exemplo, ter sabido aproveitar melhor um fenómeno como a Cesária. Estes acontecimentos devem servir para projetarmos a cultura cabo-verdiana.”

Abraão Vicente, ministro da Cultura de Cabo Verde, apostara no nome de Germano Almeida para o Camões. Em Lisboa por “uma circunstância feliz”, como referiu Castro Mendes, pôde assistir ao anúncio. E definiu assim o escritor: “Germano Almeida representa um novo olhar sobre a literatura cabo-verdiana; quando ele começa a escrever, de certa maneira rompe com uma forma se calhar demasiado séria e talvez demasiado elitista de olhar a própria literatura. Ele começa por contar as pequenas histórias de Cabo Verde e da ilha onde nasceu, a Boavista, introduz o humor como algo crucial para o desenrolar das suas histórias, acaba por ser o homem que faz renascer o conto em Cabo Verde. Sempre tivemos o conto ou o contar de histórias como algo característico da nossa sociedade, mas Germano Almeida dá-lhe outro nível, trazendo-o para a literatura e fazendo com que Cabo Verde tenha, desde finais dos anos oitenta, uma figura no panorama internacional. Ele é um consagrado.”

Abraão Vicente adianta que esteve a debater com Castro Mendes a “possibilidade de haver um autor cabo-verdiano para integrar a comitiva portuguesa na Feira de Guadalajara no México, este ano com Portugal como país convidado]”, adiantou. E acrescentou: “Fico feliz que Germano Almeida acabe por receber em tempo justo uma homenagem de toda a comunidade de língua portuguesa a dois meses de Cabo Verde assumir a presidência da CPLP.”

E elege como livro preferido Os Dois Irmãos (Editorial Caminho), que será em breve adaptado ao cinema. “É uma história muito crua e realista. Conta uma história que muitos de nós, cabo-verdianos, não teríamos coragem para contar. Os seus três grandes livros são sobre diferentes ilhas cabo-verdianas. Germano revelou-nos não apenas a sua ilha Natal em A Ilha Fantástica, como a ilha de São Vicente em O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo, e Os Dois Irmãos é sobre a Ilha de Santiago.”

Na próxima terça-feira, dia 29, chega às livrarias o mais recente romance de Germano Almeida. Chama-se O Fiel Defunto e, segundo o escritor, é mais um romance passado em S. Vicente, “a história de um escritor que é assassinado com dois tiros no dia em que vai lançar um livro. Ninguém sabe a razão desse assassinato. Depois entra o Estado e o modo como deve ou não proteger o escritor. É uma paródia.” E será mais uma vez editado pela Caminho.

O editor Zeferino Coelho confessou estar feliz com o prémio, mas não propriamente surpreendido. “Há muitos anos que por esta altura penso no Germano”, diz. Editou todos os livros do escritor desde 1994, depois de ter lido a edição cabo-verdiana de O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo. “Nessa altura estávamos mais atentos às coisas africanas, e aquele livro impressionou-nos. Era uma coisa nova. Ainda para mais vinda de Cabo Verde de onde o que chegava eram relatos muito negros. E aquilo era divertidíssimo, o outro lado da alma cabo-verdiana”, diz o editor, que recorre a uma palavra para definir Germano Almeida — prosador. “Esta ideia do prosador aplica-se bem a ele; tem uma prosa fluida, consegue transformar com muito engenho esse fluxo imaginativo para uma forma criativa e rica, há ali um ‘sotaque’ muito trabalhado”.

O Fiel Defunto será o 17.º título de Germano Almeida, que começou a publicar em 1982, com O Dia das Calças Roladas e se estreou no romance em 1991 com O Testamento do Senhor Nepomuceno da Silva Araújo, que seria adaptado ao cinema por Francisco Manso. Autor de conto, crónica, romance, Germano Almeida está traduzido em vários países, entre eles Itália, França, Alemanha, Suécia, Noruega e Dinamarca.


por Isabel Lucas in Público | 21 de maio de 2018
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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