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Christiane Jatahy não nos vai deixar em paz (e ainda bem)

A encenadora e cineasta brasileira é a Artista na Cidade 2018. A programação começa no D. Maria II com a peça Julia.

Christiane Jatahy no Teatro D. Maria II | Jorge Firmino/Global Imagens


A conversa começa com um gracejo de Christiane Jatahy, que ao pedido de uma última fotografia responde imitando a sua Julia, quando esta ordena ao cameraman que pare de a filmar. Julia, peça que parte de Menina Júlia, de Strindberg, estreia-se hoje no Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII), iniciando assim a presença da brasileira como a Artista na Cidade 2018, lugar em que sucede a Anne Teresa De Keersmaeker, Tim Etchells e Faustin Linyekula.

Porque é que o público se ri nessa mesma cena em que Julia está desesperada e onde, se nos tentamos pôr na sua pele, o riso só pode ferir? Perguntar isto a Jatahy é já pedir-lhe para caminhar a passos largos para o núcleo central da sua obra, onde a relação com o espectador está sempre em evidência, seja porque este tem de escolher onde se posicionar, condicionando o que verá da peça, ou porque ele se torna protagonista do espetáculo, como acontece em A Floresta que anda. "Acho que tem a ver com a espontaneidade. Acho que elas se surpreendem, não sabem como reagir, e às vezes as pessoas reagem rindo", responde.

Quem é esta mulher nascida no Rio de Janeiro em 1968 que se tornou na primeira brasileira a assinar uma peça na Comédie Française (A Regra do Jogo, numa adaptação do filme de Jean Renoir), acabou de estrear ÍTACA no Odéon-Théâtre de l"Europe, também em Paris, cruza cinema e teatro, performance e realidade, estudou jornalismo e mergulhou na filosofia pela mão de autores como Nietzsche ou Schopenhauer? As perguntas podem suceder-se procurando por essa mulher que pareceu preanunciar o impeachment de Dilma Rousseff no teatro, e que agora em Lisboa procurará refugiados e imigrantes com cujos testemunhos, feitos segundo 22 perguntas, formará a performance-documentário Moving People. Contudo, é aí mesmo, nas perguntas, que a encontramos. Basta olhar para a sua obra e vemo-la a interrogar pessoas acerca das suas utopias individuais, a interrogar a realidade social e política do seu país, as guerras que atravessamos, e as obras que trabalha.

"Eu diria que é um desejo de olhar para o outro, de perguntar ao outro, levantar questões ao outro que na verdade eu levanto para mim mesma. É por isso que a minha peça central se chama A Falta Que Nos Move [que será exibida no São Luiz ao longo de 13 horas, ininterruptamente]: existe um certo vazio, mas é porque ele existe que vamos adiante, e o vazio não é estático, é cheio de questões. Acho que a ideia de encontrar resposta é uma utopia. Ela é sempre volátil, desaparece das suas mãos, se reinventa em novas perguntas", responde a artista.

Quando, no dia 18, Jatahy levar à cena do TNDMII, depois de E se elas fossem para Moscou, a peça A floresta que anda, que parte de Macbeth, de Shakespeare, ela vai desejar que aquela obra não seja já atual, mesmo que num monólogo da peça vão entrando "os factos que estão acontecendo no mundo de hoje". Por exemplo: da última vez que a peça foi representada, Lula da Silva ainda não fora preso.

"Tem tristeza nisso. Muitas das mudanças são de reafirmação de um panorama brasileiro político, agravado a cada momento, mas também de um panorama mundial, de todas essas guerras, esse sistema colapsado que está insustentável. A imagem da floresta que anda, uma imagem do próprio Shakespeare, é o desejo de que um coletivo, através da sua unidade, da sua junção, possa fazer o impossível: que é fazer uma floresta andar."

Falemos, pois, de utopias. Christiane acaba de estrear ÍTACA - Nossa Odisseia I (que chega a Lisboa em junho). Desta vez, foi ainda mais atrás, dois mil anos atrás, até Homero. "Esse revisitar o passado puxa para trás como um elástico, lançando muito para a frente, muito para hoje. A Odisseia é uma espécie de lupa, de câmara, para olhar hoje."

A peça é um díptico composto, por um lado, por uma "atualização" da história de Homero, e por outro, pela realidade das "travessias dos refugiados pelos mares". Diz a encenadora: "Ítaca para mim é um nome que tem a ver com uma utopia e não necessariamente com um lugar. Ulisses depois de 20 anos imagina uma Ítaca onde quer chegar que já não é mais a que vai encontrar, como muitos desses refugiados."

Se esta peça é uma "ficção em que gotejam materiais da realidade", naquela em que a brasileira trabalha atualmente predominará a realidade. "É a Ítaca de hoje, em que está Penélope. Ela está sendo completamente destruída, devorada pelos pretendentes. Acho que é uma situação bem simbólica do que está acontecendo no Brasil hoje." Entre esses pretendentes, "em que há a ideia de tirar o que você puder", contam-se os assassinos de Marielle Franco, os políticos e os empresários do Brasil, defende a artista para quem "o palco é uma janela para o mundo" e o trabalho representa "esse desejo contínuo de olhar para fora". Até ao final do ano, Lisboa é a sua janela.

Destaques na programação

Cinema ao vivo
4 a 6 de maio
 Julia, adaptação de Menina Júlia, de August Strindberg, é apresentada entre hoje e domingo no Teatro Nacional D. Maria II. Uma peça de teatro que se transforma em cinema vivo, com cenas pré-filmadas e cenas filmadas no momento, com o filme a ser construído na presença do público.

A partir de Tchekhov
11 a 13 de maio
 E se Moscovo pudesse ser o que quiséssemos imaginar? Se fosse um passo rumo à mudança? A partir de As Três Irmãs, de Anton Tchekhov, Christiane Jatahy transporta estas questões para o teatro e para o cinema no espetáculo E Se Elas Fossem para Moscou?, desdobrado em duas sessões simultâneas, a apresentar no Teatro D. Maria II.

Inspirado em Macbeth
18 a 20 de maio
 Também no D. Maria II, subirá ao palco da Sala Garrett o espetáculo A Floresta que Anda, um trabalho da artista brasileira sobre o sistema político, económico e social que se vive no Brasil e no mundo, partindo de Macbeth, de William Shakespeare.

A partir de Homero
7 a 11 de junho
 Com criação e direção de Christiane Jatahy, o São Luiz Teatro Municipal recebe ÍTACA - Nossa Odisseia I. A partir de Homero e de outras inspirações, é uma coprodução entre o São Luiz, o Théâtre National Wallonie (Bruxelas), o Centro Cultural Onassis (Atenas), a Comédie de Genève (Suíça) com o apoio do Centquatre (Paris), e surge integrado no Alkantara Festival.

Lisboa na rua
20 a 23 de setembro
 Dentro de um contentor, instalado no jardim do Museu de Lisboa, será feita uma performance-documentário, Moving People partilhando ideias e histórias, num encontro entre imigrantes, refugiados, e um ator local que será estimulado por perguntas feitas por Christiane Jatahy. Ao público pede-se que leve objetos para compor essa casa em construção.

Vídeo-instalação
24 de novembro
 Em três telas de cinema instaladas no São Luiz, o público assiste a A Falta Que Nos Move, 13 horas contínuas de filmagem com tudo o que aconteceu na noite de Natal de 2008. A projeção começa às 17.30, hora em que começaram as filmagens, e vai até às 06.30.

 


por Mariana Pereira in Diário de Notícias | 4 de maio de 2018
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

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