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Sete pecados mortais revisitados através de sete filmes no CCB
Ciclo no Centro Cultural de Belém com filmes de Orson Welles, Stanley Kubrick e Martin Scorsese, entre outros, mostram como o cinema tratou as imperfeições humanas.
Saborosa ironia: a obra de Hieronymus Bosch (c. 1450-1516) surge agora como pretexto para um ciclo de filmes. Ironia também inevitavelmente pecaminosa. Porquê? Trata-se de invocar a inspiração de Bosch para mostrar como o cinema tem abordado os sete pecados mortais que a nossa civilização cristã nos ensinou a enumerar, reconhecer e evitar - o ciclo chama-se 7 Pecados, 7 Filmes e começa amanhã, no Centro Cultural de Belém.
O evento arranca com A Festa de Babette, título que valeu à Dinamarca o Óscar de melhor filme estrangeiro. Nele se propõe uma encenação pecaminosa, ma non troppo, da gula em tom de suave cedência às vertigens do paladar. Entenda-se: cenário dinamarquês, cozinha francesa. Nisto de fraquezas gastronómicas, a evocação da terra de Rabelais, do magret de canard e dos éclairs é suficiente para valer alguma tolerância das forças divinas. Aliás, num paradoxo que prescinde de qualquer caução racional, convém lembrar que entre as mais lendárias referências da história da indústria cinematográfica francesa encontramos os Laboratórios Éclair.
As coisas mudam francamente de figura quando deparamos com o segundo momento do ciclo: De Olhos Bem Fechados, o filme com que Stanley Kubrick encerrou a sua passagem por este mundo de muitos pecados (a estreia ocorreu em julho de 1999, cerca de quatro meses depois do seu falecimento). Logo nas primeiras imagens, vemos Nicole Kidman a despir-se, de costas para a câmara, e compreendemos a ousadia do empreendimento: aquela mulher é o símbolo imaculado do mais puro abandono... como se os nossos olhos não suspeitassem, de imediato, que algo de pecaminoso está para acontecer. Kidman e Tom Cruise, então seu marido, representam com comovente transparência as angústias do espaço conjugal. Divorciaram-se cerca de um ano e meio mais tarde, como se a sua separação fosse o epílogo real do próprio filme... mas é pecado especular sobre isso.
O ciclo inclui uma maioria de filmes (quatro) a preto e branco. Louvável perversão, sem dúvida: afinal de contas, muitos espectadores foram (mal) ensinados a pensar que o preto e branco não passa de um incidente pitoresco, como tal dispensável, na história global do cinema. Ora, neste caso, podemos redescobrir as glórias do preto e branco num arco histórico de mais de meio século, desde a amargura dramática e melodramática de Orson Welles, em O Quarto Mandamento (1942), até à fúria realista de Mathieu Kassovitz, em O Ódio (1995).
Neste lote, inclui-se também o luminoso humor de Jacques Tati, em As Férias do Sr. Hulot (1953), e esse conto cruel de Hollywood que é Que Teria Acontecido a Baby Jane? (1962), com Robert Aldrich a dirigir as infernais Bette Davis e Joan Crawford. Representando duas irmãs num ritual de autodestruição emocional, este é um filme que ilustra também as convulsões do cinema americano na década de 1960. A pouco e pouco, as estrelas clássicas, aqui em assumida caricatura do seu envelhecimento, iam dando lugar a outros rostos e, sobretudo, novas narrativas. Para ficarmos por uma referência sintomática, lembremos que 1962 é o ano de Lolita, a adaptação do romance de Vladimir Nabokov por Kubrick, filme também possível em qualquer memória mais ou menos pecaminosa.
Enfim, sublinhemos a apoteose final do ciclo, O Lobo de Wall Street (2013), com Martin Scorsese a dirigir o admirável Leonardo DiCaprio numa história de muito e pecaminoso dinheiro: gula, luxúria, ira, inveja, preguiça, soberba e avareza - está tudo aqui, ou não fosse Scorsese um genial retratista das nossas humanas imperfeições.
Programa
dia 10 - A GULA
A Festa de Babette (1987) de Gabriel Axel A partir de um conto de Karen Blixen, este é o retrato de uma pequena comunidade dinamarquesa, em finais do século XIX, conquistada pelas delícias gastronómicas de uma criada francesa, interpretada por Stéphane Audran, recentemente falecida
dia 12 - A LUXÚRIA
De Olhos Bem Fechados (1999) de Stanley Kubrick Foi o derradeiro filme de Stanley Kubrick: a crónica da vida privada de um casal vai-se transformando num metódico e detalhado conto filosófico sobre a verdade e a mentira das relações humanas
dia 14 - A IRA
O Ódio (1995) de Mathieu Kassovitz A odisseia violenta de três jovens na noite de Paris: uma tragédia social escrita, realizada e interpretada por Mathieu Kassovitz; também com Vincent Cassel
dia 16 - A INVEJA
Que teria acontecido a Baby Jane? (1962) A guerra íntima de duas irmãs, enfrentando-se no cenário claustrofóbico de uma mansão de Hollywood, é também um célebre frente a frente de duas atrizes lendárias: Bette Davis e Joan Crawford
Dia 18 - A PREGUIÇA
As Férias do Sr. Hulot (1953)
de Jacques Tati Na sua mítica encarnação de Monsieur Hulot, Jacques Tati retrata os lugares e personagens da França tradicional: as férias na praia são, de uma só vez, uma crónica social e uma celebração burlesca
dia 20 - A SOBERBA
O Quarto Mandamento (1942) de Orson Welles Segunda longa-metragem de Orson Welles, um ano depois de O Mundo a Seus Pés: uma saga familiar capaz de colocar em cena as clivagens sociais através das mais subtis convulsões afetivas
dia 21 - A AVAREZA
O Lobo de Wall Street (2013) de Martin Scorsese A história verídica de Jordan Belfort, corretor de Wall Street envolvido numa teia de dinheiro e corrupção - para o realizador Martin Scorsese, esta é uma fábula da América, o seu céu e o seu inferno
por João Lopes, in Público | 09 de abril de 2018
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público