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Capela das Albertas é uma “caixa dourada” à espera de voltar a brilhar
Encerrada há 11 anos por motivos de segurança, a Capela das Albertas, no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, começa agora a ser restaurada. No final de 2020, se tudo correr bem, deverá reabrir em pleno.
O espaço é pequeno e tem as paredes cobertas de azulejos. Na nave central desta capela com mais de 400 anos, grande parte reconstruída depois do terramoto de 1755, há 11 painéis com cenas da vida de Cristo e de Santa Teresa de Ávila. Alguns encontram-se já marcados com pequenos autocolantes com um código de cores que faz lembrar o que se usa nas urgências hospitalares depois de feita a triagem dos doentes - neste caso, o laranja é para os azulejos que estão trocados, o vermelho para os que estão absolutamente descontextualizados e cuja origem é ainda (e poderá ser sempre) um mistério.
Nalguns dos azulejos substituídos parece ter havido apenas a intenção de preencher um espaço para que a integridade do painel não fosse posta em causa, noutros adivinha-se a preocupação de dar continuidade a uma figura ou a um elemento arquitetónico, sem que o resultado convença, apesar de intrigar. É assim num dos painéis da vida da religiosa que ajudou a fundar a Ordem dos Carmelitas Descalços e que teve no Convento de Santo Alberto, criado em 1585, a primeira casa feminina em Portugal. De repente, aquilo que devia ser um anjo-menino “daqueles que nos habituámos a ver no barroco”, diz o técnico de conservação e restauro André Tereso, transforma-se num anjo-velho, mas sem perder as asas.
Tereso e a colega Marta Oliveira têm a seu cargo o restauro dos azulejos desta capela que há 80 anos faz parte do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), instalado no Palácio dos Condes de Alvor, um edifício que foi construído no fim do século XVII, no espaço que antes pertencera ao convento de clausura, conhecido por guardar como principal relíquia, segundo a tradição, a mão esquerda de Santa Teresa.
“A decisão de manter a capela como parte do museu [acrescentada ao percurso com a ampliação do arquiteto Guilherme Rebelo de Andrade, inaugurada em 1940] foi muito acertada”, diz António Filipe Pimentel, o historiador de arte que dirige há oito anos o MNAA. “O que não é nada acertado é o estado de degradação a que chegou” e que obrigou ao seu encerramento ao público há 11 anos, por motivos de segurança.
Agora, garante Pimentel, o museu pôs em marcha um projeto que quer devolver-lhe o seu brilho original e dar mais coerência ao percurso expositivo, ligando a Sala dos Presépios à capela — entre as duas vai estar o Presépio dos Marqueses de Belas, que em breve deverá entrar em restauro (ver texto ao lado) — e abrindo uma nova galeria dedicada à coleção de têxteis do MNAA, que tem mais de 1500 peças e da qual estão expostos menos de dez (tapeçarias europeias e tapetes persas), e cujo acervo será renovado a cada nove meses.
“Restaurar esta capela é muito importante para nós, porque ela ilustra na perfeição, de forma muito coerente, o dinamismo do barroco português, com a escultura, a pintura, a talha e o azulejo a trabalharem para a tal ‘obra de arte total’ que vem nos livros”, explica o diretor, defendendo que a igreja do antigo convento carmelita parece feita à medida de um museu, completando-lhe o discurso no que toca a este período da criação.
Acrescenta o historiador que a capela, cuja construção terminou no fim do XVI mas que teve de esperar mais de 100 anos para que a decoração do interior fosse dada por concluída, funciona como uma “caixa dourada, absolutamente cenográfica”, mostrando-nos até que ponto, no barroco, “é a plasticidade do conjunto que conta”.
Começar e não parar
A intervenção nesta pequena igreja onde são ainda visíveis as marcas de um convento de clausura, que começou agora pelo restauro do azulejo graças a um mecenato de 25 mil euros da fundação que organiza a Feira de Arte e Antiguidades de Maastricht, a TEFAF, uma das melhores do mundo, vai estender-se depois à estrutura (isolamento da parede exterior), à talha, à escultura e à pintura.
“O dinheiro que vem da TEFAF não chega para todos os azulejos, mas cobre uma parte muito significativa e é prestigiante para o nosso museu, que apresentou esta intervenção no azulejo das Albertas a convite da própria fundação e que foi escolhido a par do Museu de Boston, que está a restaurar dois Rembrandts.”
O projeto global da capela está orçado em 250 mil euros (sem contar com a iluminação, que lhe dará a carga cenográfica que merece), mas o seu diretor acredita que esse valor subirá facilmente para os 300 mil, já que é natural que haja “surpresas desagradáveis” à medida que a obra avança.
Com surpresas ou não, o calendário previsto é o seguinte: sala dos têxteis aberta até ao Verão, presépio restaurado até outubro e colocado no seu lugar no Natal, altura em que a Capela das Albertas deverá abrir como “estaleiro visitável”, para que o público possa acompanhar os trabalhos. “Se tudo correr bem, contamos reabrir a capela em pleno até ao final de 2020. A ideia é começar e não parar.”
Para isso, o MNAA terá de encontrar mecenas e de garantir financiamento público. Por agora, diz Pimentel, não há ainda qualquer verba da Direcção-Geral do Património Cultural, que tutela o museu, alocada ao projeto.
Uma leitura harmoniosa
Bem mais apertado é o calendário desta fase do restauro do azulejo, que deverá estar concluída em dois meses e meio, diz André Tereso, da empresa de património Signinum, alertando para o facto de um projeto como o das Albertas levantar inúmeras questões éticas aos técnicos de conservação e restauro e ao dono da obra.
“A degradação do objeto também faz parte da sua história, daí a necessidade de ser o menos invasivo possível quando se faz uma intervenção como esta. A prioridade deve ser sempre conservar. O objetivo da intervenção não é apenas nem sobretudo estético.” O que se pretende neste projeto que vai recuperar a cobertura azulejar — na primeira fase, os trabalhos decorrerão na nave e na capela-mor, na segunda nas capelas de Santa Teresa e do Santo Cristo da Fala, e na última na sacristia, um espaço pequeno e muito degradado — é criar uma leitura coerente do conjunto.
“O importante é manter uma integridade visual e estética harmoniosa, intervindo o menos possível, porque, quanto menos intrusivo e mais conservativo é o nosso trabalho, mais tempo dura.”
Para que tal aconteça, assegura André Tereso, é fundamental que se acabe com o problema da humidade que ameaça o conjunto e qualquer intervenção que nele se faça, sobretudo na área da sacristia e da parede norte, a que dá para o exterior e que, por estar em parte numa quota inferior à da rua, nunca apanha sol. “A capela tinha muitas infiltrações, que foram resolvidas com as obras na cobertura [campanha de 2013, feita com o apoio da Fundação Millennium BPC], mas continua a ter muitas humidades. É preciso resolver este problema na origem para que aquilo que estamos a fazer resulte.”
Neste momento, é ainda muito cedo para dizer se serão feitas réplicas dos azulejos em falta e de que forma se distinguirá aquilo que já existia do que é produto da presente intervenção dos restauradores. Para já, André Tereso e Marta Oliveira estão a concluir o diagnóstico, mapeando as diversas formas de degradação dos azulejos. Montaram andaimes e projetores e têm uma mesa no meio da nave com um computador onde vão armazenando centenas de fotografias que constam do levantamento que estão a fazer e rodeada de caixotes com azulejos que encontraram na sacristia, alguns deles partidos.
“Este pé estava lá atrás [na sacristia], mas na primeira vez que aqui estivemos para preparar a proposta de intervenção que acabámos por apresentar, vi logo que pertencia ao painel da Última Ceia”, conta o conservador restaurador, apontando para um azulejo. “É ótimo que ainda exista, porque quando está em falta um rosto, um pé ou uma mão é muito difícil de resolver.”
Nesta fase, os técnicos estão também a fazer os testes de limpeza e de materiais que lhes permitirão decidir que argamassas tradicionais usar na hora de preencher lacunas e reforçar as juntas dos azulejos. No final, o tratamento que darão aos novos materiais poderá recorrer a um “subtom de azul” e dispensar o brilho, para que seja claro onde esteve a sua mão: “Terá de ser o dono da obra [nesta caso o MNAA] a decidir, mas as alterações no brilho e na cor dão essa informação. Não são percetíveis ao longe, mas ao perto nota-se porque o azulejo fica com outra luminosidade.”
Ver as Albertas com outra luz é precisamente o que se pretende a partir de 2020.
por Lucinda Canelas, in Público | 7 de março de 2018
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público