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Bem-vindos a casa: os objetos domésticos como obras de arte

"Fridge" (1999), de Clive Barker A curadora Adina Kamien-Kazhdan com a "Fonte" de Duchamp "Arched Figure" (1993), de Louise Bourgeois "Mr. Dob" (1994), de Takashi Murakami "Lipstick Urinals" (1992), de Rachel Lachowicz


O centenário da "Fonte" de Duchamp foi o pretexto para "No Place Like Home", mostra concebida como uma casa, onde os objetos do quotidiano são obras de arte (e vice-versa).

Há um carrinho de bebé estacionado à porta desta casa. Um cabide na entrada. Um lava-loiças e um frigorífico na cozinha. Há armários na despensa, um comboio e uma casa de bonecas no quarto dos brinquedos, vários ecrãs na sala, urinóis na casa de banho, uma cama no quarto e até há um quarto de vestir. Há uma garagem com toda a trabalha que costuma haver nas garagens. E, no jardim, podemos sentar-nos num banco de pedra, ao lado da roupa estendida, a ver os pombos pousados no telhado. E, no entanto, nesta casa nem tudo o que parece é. Ao contrário das casas verdadeiras, aqui todos os objetos são inúteis. A sua única função é fazer-nos parar e pensar. É isto a arte.

No Place Like Home é o título da exposição que inaugurou no Museu Berardo, em Lisboa. Tudo começou no Museu de Israel, em Jerusalém, onde a curadora Adina Kamien-Kazhdan decidiu celebrar o 100º aniversário do movimento Dada (em 2016) e o 100º aniversário da Fonte de Duchamp (em 2017) com uma exposição que refletisse sobre a influência deste artista e do conceito de ready made na arte contemporânea. Rapidamente, no entanto, esta transformou-se numa exposição sobre o uso e a representação de objetos do quotidiano domésticos na arte. A ideia tornou-se clara quando a curadora se deparou com a Tábua de Engomar que a artista japonesa Yayoi Kusama criou em 1963: uma tábua de onde parecem brotar, quais cogumelos, falos de todos os tamanhos. Um grito de protesto da artista contra a submissão da mulher à vida doméstica. "Esta foi a peça que me fez querer fazer esta exposição", explicou Adina Kamien-Kazhdan numa visita guiada aos jornalistas, ontem de manhã.

Se os artistas pegaram em objetos do quotidiano e lhes retiraram o contexto e a utilidade, transformando-os em objetos artísticos, o que esta exposição faz é o caminho inverso: pega nesses objetos artísticos e volta a pô-los numa casa, uma casa imaginada numa galeria mas ainda assim uma casa. "Foi assim que esta exposição foi construída: pensei nos vários espaços da casa e fui à procura do que podia pôr em cada um deles."

E, na verdade, foi muito fácil encontrar obras para pôr em todas os recantos de uma casa. Sejam as portas de entrada de Doris Salcedo (La Casa Viuda, 1995), o telefone de Dalí (White Aphrodisiac Telephone, 1936), o biombo de Mona Hatoum que é na verdade um ralador gigante (Great Divide, 2002), a vassoura de Man Ray (French Ballet, 1956), o chuveiro de Hadassa Goldvicht (Honey, 2005), a cama de Louise Bourgeois (Arched Figure, 1993) ou os pombos de Maurizio Cattelan (Tourists, 1998). No total, a exposição tem mais de 110 peças, das quais 70 são do Museu de Israel, 30 pertencem à Coleção Berardo, 10 foram cedidas pela Coleção Elipse e as restantes pertencem a outras coleções.

Uma exposição feminista

Mas voltemos ao início: em 1917, Marcel Duchamp apresentou um urinol invertido numa galeria de arte e causou uma revolução. Não era a primeira vez que usava objetos comuns, já o tinha feito no seu estúdio, mas era a primeira vez que os apresentava em contexto de galeria. "O que ele está a dizer é que não é o trabalho manual do artista que define uma obra de arte, pode ser apenas a escolha de um objeto ou a intenção com que o artista coloca o objeto num determinado lugar que o transforma numa obra de arte", explica Adina Kamien-Kazhdan. "O que a arte faz é mudar a perspetiva com que olhamos para as coisas. Faz-nos reparar em algo que não tínhamos reparado."

Este ato revolucionário, influenciou toda a arte contemporânea, direta ou indiretamente. Isso mesmo admitiu João Pedro Vale, autor de Can I Wash You? (1999), uma das duas obras de artistas portugueses que integram a exposição (a outra é Ciclo: Vestígio. A Ciência do Excesso, 1998, de José Barrias).

"Com estas obras, os artistas quiseram levantar várias questões importantes, como por exemplo a discriminação, o trabalho doméstico, a vida em família, o género", salientou a curadora. E, tratando--se de uma reflexão sobre o espaço doméstico, esta não podia deixar de ser uma exposição feminista - vejam-se, só a título de exemplo, as peças de Hannan Abu-Hussein (I/She, Woman, Female, Whore, Pride, 1988), de Martha Rosler (Semiotics of the Kitchen, 1975) ou Rachel Lachowicz (Lipstick Urinals, 1992). É impossível falar da casa sem questionar a condição da mulher.

Esta é uma exposição com várias camadas de leitura - que tanto pode ser apenas divertida como pôr-nos a questionar a sociedade - e também por isso se aconselha uma vista de olhos ao catálogo, feito em parceria com o Ikea e em tudo semelhante a um catálogo da loja. A intimidade, o voyeurismo, as relações familiares, o poder, são muitos os temas aqui abordados. Afinal, como já dizia Dorothy, a menina de sapatos vermelhos que perseguia os seus sonhos no filme O Feiticeiro de Oz (1939), não há lugar como a nossa casa.

No Place Like Home
Museu Coleção Berardo, Lisboa
Até 3 de junho
Bilhetes: 5 euros
(entrada gratuita aos sábados



por Maria João Caetano in Diário de Notícias | 28 de fevereiro de 2018
Fotos José Sena Goulão/Lusa
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

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