"É de Cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos que vos quero falar"

Notícias

Estas pedras são para quem acredita

São 40 esculturas devocionais, algumas com mais de 600 anos. 

Pormenor de Virgem do Leite (séc.XV-XVI) pertencente à coleção do Convento de Cristo Técnicas de conservação e restauro preparam uma Nossa Senhora das Dores para a exposição S. Miguel Arcanjo (séc.XVI), da Igreja Matriz de Carregueiros, Tomar Técnicas trabalham na limpeza de um Calvário Este Arcanjo São Miguel, da oficina de Gil Eanes (ativo entre 1450 e 1500), fazia parte da coleção do Comandante Ernesto Vilhena, doada ao Museu Nacional de Arte Antiga Vista geral da Capela do Noviciado, que foi projetada por João de Castilho e que na exposição serve de cenário ao núcleo dedicado a São Miguel Arcanjo São Miguel Arcanjo (séc. XV), de João Afonso, parte do acervo do Museu Nacional de Machado de Castro


Saíram das reservas do Convento de Cristo, mas também de igrejas ali bem perto e de museus nacionais. Durante séculos foram objeto de culto e ajudaram a humanizar uma história que está longe de ser fácil de entender.

São imagens que carregam medos, esperanças e preces de milhares de mulheres e homens ao longo de séculos. Algumas são de produção rústica, popular, outras são verdadeiras obras de arte. Umas perderam-se do cenário para onde foram criadas e interpelam agora os visitantes nas galerias dos museus ou aguardam a sua vez nas reservas, outras ainda vivem na sua primeira casa, cumprindo a função que lhes foi originalmente confiada no altar de uma igreja matriz ou de uma capela. A muitas falta-lhes a cabeça e é preciso, por isso, adivinhar-lhes a expressão. A partir desta quarta-feira, e até 27 de julho, estão todas juntas numa das alas do Convento de Cristo, em Tomar, um dos mais extraordinários monumentos portugueses.

No Rasto da Devoção: Escultura em Pedra no Convento de Cristo (Séculos XIV-XVI) reúne cerca de 40 obras, na sua maioria provenientes da coleção desta casa religiosa fundada há mais de 800 anos, mas também de museus nacionais (Arte Antiga e Machado de Castro) ou municipais (Santos Rocha, Figueira da Foz), de igrejas das proximidades (Carregueiros ou Pedreira) e da Diocese de Santarém.

“Não fomos à procura das peças de maior qualidade plástica, embora haja aqui obras absolutamente notáveis, mas das imagens que tiveram e ainda têm grande eficácia devocional, que apelam à emoção e ajudam a explicar aos fiéis, que há séculos atrás não sabiam sequer ler, aspetos altamente complexos da doutrina e das práticas do cristianismo”, diz ao PÚBLICO Maria de Lurdes Craveiro, investigadora da Universidade de Coimbra e uma das comissárias científicas da exposição. Por isso estas esculturas são, de certa forma e para quem acredita, “pedras capazes de tranquilizar e até de curar”.

No Rasto da Devoção toma conta de várias salas da ala do noviciado, a que os visitantes do monumento dão pouca atenção, reconhece a sua diretora. “Estes espaços fazem parte do percurso [de visita], mas as pessoas não ficam por aqui muito tempo. E é pena – a capela do noviciado é realmente muito especial”, diz Andreia Galvão. É precisamente nesta “jóia arquitetónica do Renascimento português”, projetada por João de Castilho, o grande arquiteto do Mosteiro dos Jerónimos, a quem se devem também alguns dos espaços mais icónicos do Convento de Tomar, que a exposição termina, numa sala dedicada a São Miguel, “chefe da milícia divina”, que é das figuras mais populares do culto cristão.

Nesta antiga capela encontram-se, por exemplo, uma peça de João Afonso (século XV), celebrado escultor formado no estaleiro do Mosteiro da Batalha mas que trabalhou essencialmente em Coimbra, em que o arcanjo tem um manto com vestígios de vermelho e os objetos com que é habitualmente representado – uma lança na mão direita, com que vence o demónio a seus pés, e uma balança na esquerda, que usa para pesar as almas no juízo final. “O que é mais extraordinário é o detalhe das asas longas, lindíssimas, a expressão serena do rosto”, diz Maria de Lurdes Craveiro, doutorada em História de Arte e professora em Coimbra. Esta figura que hoje está no Museu Machado de Castro estabelece um contraste claro com a da Igreja Matriz de Carregueiros (inícios do século XVI), muito repintada ao longo dos séculos, e propositadamente restaurada para esta mostra.

João Afonso, Diogo Pires o Velho, Diogo Pires o Moço e o grande João de Ruão, de origem francesa e forte influência italiana (a Universidade de Coimbra dedica-lhe um colóquio de 26 a 28 de abril), estão entre os mestres reconhecidos e estudados. Algum deles terá passado pelo Convento de Cristo? Maria de Lurdes Craveiro não dá certezas, mas lá vai lembrando que há quem defenda, ainda que não haja documentos a comprová-lo, que Ruão é o autor do retábulo do Convento de Santa Iria, ali bem perto.

Esculturas decapitadas

Acabar com um arcanjo guerreiro, que a igreja associa à vitória sobre o demónio, síntese de todo o mal, uma exposição que abre com um anjo que ilumina toda a narrativa cristã e conduz ao culto de Maria, a mãe de Jesus, uma contante desde a Idade Média, é um bom contraponto.

Decapitado, como a maioria das esculturas guardadas nas reservas do Convento de Cristo que deram origem a esta exposição – dividida em seis núcleos temáticos coincidentes com pontos fortes da devoção cristã entre os séculos XIV e XVI –, este anjo com mais de 600 anos ainda tem vestígios de tinta dourada, preta e vermelha.

Terá sido salvo pela União dos Amigos dos Monumentos da Ordem de Cristo (UAMOC), constituída formalmente em 1918 e desaparecida no pós-25 de Abril. A esta associação constituída pela “elite da terra” se deveu, no início do século, a proteção de um vasto património, quando conventos e igrejas estavam completamente a saque ou tinham ocupações indevidas.

Com publicações regulares de grande qualidade, garante a investigadora da Universidade de Coimbra, a UAMOC, que tinha entre os seus sócios o historiador de arte João Couto, que chegou a ser diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, conseguiu reunir dezenas de peças num pequeno museu que instalou no convento. “É claro que o inventário que faz segue critérios que hoje consideramos serem de grande ingenuidade, mas teve o mérito de salvar muitas esculturas que, de outra forma, teriam acabado destruídas ou vendidas no mercado dos antiquários a quem pudesse pagar mais.”

Esse inventário não deixa claro, por exemplo, de onde vem a maioria das peças e a descrição que delas faz é tão sumária que chega a pôr em dúvida a escultura a que se refere determinada ficha.

“É um desafio permanente, mas é um ponto de partida muito interessante. O núcleo do convento permite-nos começar a perceber a importância da triangulação Coimbra-Batalha-Tomar na produção escultórica. Com ele podemos começar a lançar hipóteses sobre a circulação dos mestres escultores, sobre as oficinas, sobre as pedreiras de onde vinha o calcário.”

Para estas hipóteses contribui a equipa multidisciplinar que está a trabalhar para esta exposição, uma iniciativa do Convento de Cristo e do Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património da Universidade de Coimbra que conta também com o apoio do Politécnico de Tomar, parceiro de longa data deste monumento património mundial há 35 anos, e dos laboratórios Hercules (Universidade de Évora) e José de Figueiredo. Estes três últimos organismos trabalharam na conservação e no restauro das peças e no estudo dos materiais, tarefa ainda muito longe do fim.

“Fizemos o levantamento 3D das esculturas, das patologias e das policromias, mas há ainda muito a fazer”, diz António Candeias, o químico que dirige o Laboratório Hercules, falando de um “processo difícil, complexo”, porque as esculturas estão em estados de conservação muito diferentes. “Algumas estão muitíssimo repintadas e o material original não é percetível nem à primeira, nem à segunda. Temos um volume astronómico de informação que agora é preciso tratar.”

Só um estudo mais fino, que deverá produzir resultados divulgáveis no próximo ano, poderá dizer de onde vêm as pedras de que são feitas, que tipos de técnicas e tintas foram usadas e que afinidades há entre as oficinas que as terão produzido. E mais uma vez se volta à “triangulação” Coimbra-Batalha-Tomar a que a comissária da exposição já se referiu.

Maria de Lurdes Craveiro fala de três grandes casas religiosas que, em diferentes períodos, terão disputado o poder, concentrado as atenções e os favores régios, assim como a mão de obra mais especializada, sobretudo no que toca à arquitetura e à escultura integrada: o Mosteiro de Santa Cruz (Coimbra), onde começaram por mandar os cónegos regrantes de Santo Agostinho; o Mosteiro de Santa Maria da Vitória (Batalha), entregue aos dominicanos, mendicantes; e o Convento de Cristo (Tomar), confiado aos monges cavaleiros da Ordem de Cristo.

“Até aos finais do século XVI, Coimbra imperou na produção escultórica em pedra e, por isso, é a mais estudada – conhecemos as pedreiras de onde vem o calcário [Ançã, Outil, Portunhos], conhecemos mestres e oficinas. O protagonismo da Batalha e de Tomar foi episódico. O que sabemos sobre quem aqui trabalhou é ainda muito pouco. Sabemos que os escultores andam de um lado para o outro à procura de trabalho e de melhores condições, mas não podemos identificar com certeza a mão deste ou daquele aqui.”

Uma mãe como as outras

À medida que o estudo for avançando, poderá haver novidades a esse respeito, defende António Candeias, mas nada é, para já, certo. “Muitas das peças sofreram alterações, estão amputadas, os santos perderam cabeça e atributos. Nas que ainda estão ao culto, os repintes causam problemas de interpretação, mas também dão informação relevante sobre a vivência [religiosa] daquelas comunidades”, acrescenta. Comunidades extremamente devotas compostas por pessoas que rezaram (rezam ainda?) a São Brás para que lhes curasse a garganta, que se emocionaram com o sofrimento de Cristo a partir de um Calvário do ciclo de João Afonso ou tentaram compreender a Santíssima Trindade, um dos dogmas mais complicados da narrativa teológica, a partir de uma escultura em que a figura de Deus (é assim a da Igreja da Pedreira) parece “harmoniosa e doce”, diz Maria de Lurdes Craveiro.

Não há, no entanto, figura mais humanizada nestas devoções que a exposição transforma em núcleos temáticos do que a da Virgem do Leite do primeiro módulo, que abre com uma escultura curiosa – Maria não tem cabeça e o Menino Jesus desapareceu quase por completo. Vemos-lhe apenas a mão a afastar delicadamente a roupa da mãe, preparando-se para mamar. “A Virgem do Leite surge para mostrar aos fiéis que também Maria foi mãe e, como tantas outras mães, deu de mamar ao seu filho. É algo perfeitamente natural, humano, identificável. Permite à igreja estar perto daqueles que acreditam. Nesta escultura temos de imaginar o rosto de Maria e de Jesus, mas nem por isso ela perde a força de um gesto humano que cria um momento de grande intimidade”, independentemente de quem está a ver.


por Lucinda Canelas, in Público | 31 de janeiro de 2018
Fotografias de Sebastião Almeida
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

Agenda
Ver mais eventos

Passatempos

Passatempo

"Seraphina - Uma aventura da cidade para o campo"

A Yellow Star Company apresenta o espetáculo sensorial e musical concebido especificamente para bebés dos 0 aos 4 anos no Auditório Taguspark, em Oeiras, e para a sessão de 7 de dezembro (sábado), às 10h30, temos para oferta 2 packs de família até 3 pessoas cada.

Passatempo

Ganhe convites para o espetáculo "A NOITE"

Em parceria com a Yellow Star Company, oferecemos convites duplos para o espetáculo "A Noite" de José Saramago. Trata-se da primeira peça de Teatro escrita pelo único prémio Nobel da Literatura de língua portuguesa. Findo o passatempo, anunciamos aqui os nomes dos vencedores!

Visitas
99,190,729