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Residências artísticas com música lá dentro

Quem programa deseja sentir-me mais próximo da criação, quem produz a música almeja outras possibilidades de criação. De Grouper a Thurston Moore, dos Ermo aos Quest, há muitos exemplos de residências artísticas com músicos em Portugal.

Os Ermo estiveram no GNRation de Braga no ciclo Trabalho da Casa, em que as bandas são desafiadas a criar projetos do zero. A americana Angel Olsen passou temporada em Lisboa a ouvir fado. Foi para estúdio com músicos para  gravar músicas da Amália, algumas cantadas em português, e foi feito um documentário dessa experiência, que está por lançar. De uma residência artística em Aljezur viria a resultar a edição, em 2014, de Ruins, que Grouper reconhece como indissociável do espaço e tempo onde foi registado. Aqui na ilha de São Miguel onde viria a estar em residência também. Thurston Moore (Sonic Youth) esteve na ilha de São Miguel, Açores; dessa residência resultou um livro de letras traduzidas para português. Westway Lab. Aqui com Pedro Coquenão (Batida), Guillermo Blanes (Primitive Reason) e Júnior (Terrakota).


Alargar a prática artística. Explorar outras possibilidades de criação. Experimentar a criação num novo contexto. Enfim, as hipóteses são múltiplas. Durante muitos anos as residências artísticas em Portugal eram conotadas essencialmente com as artes performativas ou os campos da arte contemporânea. Na atualidade também a música popular usufrui desse dispositivo, daí podendo resultar, em muitos casos, um disco, um vídeo, um documentário, um concerto ou uma outra manifestação artística.

A Galeria ZDB, em Lisboa, é uma das plataformas que aposta há muitos anos em residências artísticas no campo da arte contemporânea. Há cerca de dez anos, o programador musical Sérgio Hydalgo, confrontado com o trabalho aí desenvolvido nas artes visuais pelo curador e programador Natxo Checa, em conjunto com artistas como Alexandre Estrela ou Pedro Paiva e João Pedro Gusmão, começou a imaginar como seria efetivar o mesmo mas no campo da música. “Fui observando e tentando perceber o que eles estavam a fazer e fui sentido a necessidade de me aproximar de alguns artistas de forma diferente daquela que um programador faz normalmente quando programa um concerto”, reflete. “Queria sentir-me mais próximo da criação artística e fui tentando perceber de que forma é que isso poderia acontecer.”

Em 2011 fez-se luz com a americana Liz Harris, ou seja Grouper. “Já tinha trabalhado e viajado com ela no âmbito da programação de concertos e, às tantas, percebi que ela tinha necessidade de sair do seu país por razões pessoais e aproveitei para a desafiar a vir para Portugal e passar aqui uma temporada. Foi dessa forma orgânica que surgiu a ideia de trabalhar isolada em Aljezur.” Dessa residência artística viria a resultar a edição, em 2014, do magnífico álbum Ruins, que a própria viria a reconhecer ser indissociável do espaço e tempo onde foi registado, feito de música intensa que parece iluminar a tristeza, com duas mãos acariciando um piano enquanto uma voz parece ruminar consigo própria, enquanto lá fora se ouve a chuva, as rãs ou o vento.

Naquele caso, o resultado final, foi contaminado pelo local onde se desenrolou a residência, o que é muito comum acontecer. “As possibilidades são múltiplas mas como é evidente a escolha do local parte de um desejo do próprio músico, ou seja, já existe uma pré-disposição”, reflete Sérgio Hydalgo. “Lisboa foi quase sempre essencial, no sentido em que constituiu o primeiro fascínio da maior parte dos músicos com quem desenvolvi residências, mas fazê-las em Aljezur, em Cabo Verde, ou nos Açores e Madeira, como já aconteceu, acaba por ser diferente. Por norma são espaços rurais, mais fechados, do que um lugar urbano.”

O essencial, diz Sérgio Hydalgo, é auscultar a própria vontade do músico. “Tudo começa por uma conversa onde tento perceber se o contexto ideal poderá ser urbano ou mais isolado. No caso da residência com Norberto Lobo havia uma razão para irmos para Cabo Verde – havia uma herança familiar e a procura das raízes. Nesse caso decidiu-se potenciar o desejo do próprio músico. E na verdade, na maior parte dos casos, é assim que faz sentido.”

Depois de Liz Harris muitos outros projetos especiais se desenrolaram com Alex Zhang Hungtai, Scout Niblett, Mykki Blanco, Pete Swanson, Amen Dunes, CTM, Volúpia das Cinzas, Filipe Felizardo ou novamente Grouper, desta vez nos Açores em colaboração com o festival Tremor, dos quais resultaram discos, espetáculos ou material por editar. Numa parceria com o festival Walk & Talk, o americano Thurston Moore (Sonic Youth), esteve no Pico do Refúgio-Casas do Campo, na ilha de São Miguel, nos Açores, já depois de ter estado na Estalagem da Ponta do Sol na Madeira.

Na Madeira esteve essencialmente a escrever e nos Açores, para além de conhecer o território, como era seu desejo, decidiu fazer uma publicação, do qual resultou um livro de letras traduzidas para português, que foi impresso na Tipografia Micaelense.”

Por vezes os resultados das residências levam anos a serem revelados. Depende, inclusive, da agenda dos criadores. Foi o que aconteceu com a americana Angel Olsen. “Conhecia-a em 2011, num concerto que a ZDB fez no Maria Matos, quando ela fazia coros para o Bonnie Prince Billy. Ela tinha lançado um EP com um tema que, na introdução, era muito colado ao Barco negro da Amália Rodrigues. O curioso é que ela não conhecia a Amália e daí surgiu o desejo de passar uma temporada em Lisboa para conhecer fado. Entretanto a carreira dela cresceu muito e a coisa foi-se adiando até que em 2016 ela conseguiu vir dos EUA para passar aqui algum tempo, durante o qual lhe apresentei músicos, ela foi ouvir fado, e depois foi para estúdio com alguns deles para  registar músicas da Amália, algumas cantadas em português, e foi feito um documentário dessa experiencia, que está por lançar.”

Para 2018 o ritmo não irá abrandar, com Circuit Des Yeux, Pan Daijing ou Gabriel Ferrandini no horizonte. Este último vai mesmo dar início a uma parceria entre a ZDB e a estrutura Matadero em Madrid, desenvolvendo um projeto para um ensemble constituído por seis músicos que será apresentado durante a ARCO Madrid.

Outra estrutura que tem apostado em residências artísticas com músicos é a GNRation de Braga, dirigida por Luís Fernandes, que salienta que a maior parte “têm em vista a apresentação de conteúdos no próprio espaço, seja um concerto, instalação ou exposição, embora esse padrão possa ser contrariado”, reflete. “Os Sensible Soccers compuseram coisas especiais para tocar cá – numa produção com o Maria Matos e o Curtas de Vila do Conde – tal como tivemos bandas como os Ermo, que estiveram cá ao abrigo do ciclo chamado Trabalho da Casa, no qual as bandas são desafiadas a criar projetos do zero, do qual pode resultar um disco, porque também temos um estúdio de gravação.”

E dá exemplos. “O Norberto Lobo gravou cá, parcialmente, o último disco dele, o mesmo acontecendo com os Sensible Soccers e os HHY & The Macumbas que gravaram aqui um disco que ainda irá sair. O mesmo aconteceu com o inglês Peter Kember (Sonic Boom) que também esteve aí em residência e gravou material.”

Quartos para pernoitar e múltiplos espaços de trabalho é aquilo que o GNRation tem para oferecer. Ou seja, “a possibilidade de focagem e o posicionamento diferente perante a criação, o que acaba por ser positivo em termos de estímulo mental”, diz Luís Fernandes, que enquanto músico (Peixe: Avião, The Astroboy ou Quest) já experimentou também processos semelhantes. “Uma das residências foi feita no âmbito do festival Tremor dos Açores, na companhia da pianista Joana Gama, e a outra em Guimarães, também com ela, orientado para um trabalho com a Orquestra.”

Foi em Guimarães, mais precisamente no contexto do evento Westway Lab e da programação do Centro Cultural Vila Flor, que o seu diretor artístico, Rui Torrinha, desafiou Luís Fernandes e Joana Gama para “um projeto de composição e depois de trabalho com a orquestra local.” É também ali que tem pensado “as residências artísticas como forma de me desafiar enquanto programador.” Foi isso que originou o Westway Lab, afirma.

“Vivemos numa sociedade onde tudo é olhado como produto e interessou-me investir naquilo que acaba por ser o processo. Ou seja, quisemos questionar qual o lugar dos artistas nesse processo? Que liberdade é que têm? Que condições usufruem? E por último perceber até que ponto se conseguem libertar dos seus padrões de criação nesse mesmo processo?” A ideia passou por colocar em contacto músicos que não se conhecessem e desafiá-los a criar em conjunto. “Um desafio de coabitação e de experimentação”, resume Rui Torrinha, “deixando-os fazer o que bem entendessem em função da situação estabelecida entre eles. A expectativa foi a liberdade outorgada e ir em contraciclo com essa ideia do produto cultural que se tornou ditatorial.” O balanço, reflete ele, “é extremamente positivo.” Não só ao nível da autodescoberta dos próprios músicos, como dos resultados finais, com alguns deles a optarem por prolongar os seus projetos.

“Os Thila, que são o Pedro Lucas (Medeiros/Lucas) e o esloveno Tine Grgurevic (Bowrain), estão a ultimar um álbum e deram uma série de concertos depois de terem estado em residência no Centro de Criação de Candoso, o mesmo acontecendo com o Nelson Reis (We Bless This Mess) com os húngaros Ivan & The Parazol. Da mesma forma o Pedro Coquenão (Batida), o Guillermo Blanes (Primitive Reason) e o Júnior (Terrakota) estão super interessados em dar continuidade ao projeto com concertos.”

No Centro de Criação de Candoso, com atividade todo o ano, em 2017 decorreram 25 residências. A maior parte dedicadas às artes performativas. Mas a música vai ganhando espaço. O objetivo é sempre o mesmo: “Desinquietar, desassossegar e gerar outras possibilidades de criação entre músicos.” 


por Vítor Belanciano, in Público | 2 de janeiro de 2018
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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