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Miguel Ângelo passou semanas num quarto secreto a desenhar nas paredes?
Se há uma luta de poder e um dos maiores artistas do Renascimento se vê obrigado a esconder-se dos seus inimigos numa cela subterrânea, estamos provavelmente na Florença do século XVI.
Mas os especialistas continuam em desacordo quanto à autoria dos desenhos e à veracidade deste episódio rocambolesco. Este quarto que durante séculos foi um segredo deverá abrir ao público em 2020.
Foi em 1975 que funcionários da Basílica de S. Lourenço, em Florença, descobriram numa das mais sumptuosas capelas funerárias do Renascimento italiano – a dos Medici – um alçapão sob um armário. Depois de o abrirem deram com umas escadas de pedra muito estreitas que conduziam a uma pequena sala retangular, com sete metros de comprimento por dois de largura. As suas paredes cobertas de gesso estavam sujas, com bolor, mas deixaram Paolo dal Poggetto intrigado.
Suspeitando que aquela pequena cela podia estar a esconder-lhe alguma coisa, o então diretor do Museu Bargello, que ainda gere a Sacristia Nova, onde fica a capela, mandou os seus técnicos de conservação e restauro retirarem a camada superficial de gesso, operação que acabou por pôr a descoberto 50 desenhos e esboços que, defende Dal Poggetto, terão sido feitos por Miguel Ângelo, um dos maiores artistas do Renascimento e autor da capela dos todo-poderosos Medici, seus mecenas.
Embora nem todos dêem como certa esta atribuição, facto é que alguns destes desenhos apresentam inúmeras semelhanças com o que este pintor e escultor criara nos seus primeiros anos, repetindo elementos reconhecíveis do teto da Capela Sistina, terminada em 1512, e outros relacionados com David, uma das suas mais célebres esculturas, que deu por concluída oito anos antes e que se transformaria no símbolo dos que em Florença se revoltaram contra o poder dos Medici.
Para proteger a integridade deste conjunto singular com quase 500 anos – a acreditar na teoria de Dal Poggetto, Miguel Ângelo Buonarroti (1475-1564) serviu-se das paredes como se de um gigantesco bloco de esboços se tratasse, preenchendo-as de alto a baixo com desenhos a carvão e a giz – esta cela subterrânea da Basílica de S. Lourenço foi encerrada, abrindo ao público apenas esporadicamente nas últimas quatro décadas.
Dizem alguns guias de Florença que, durante anos, visitar este quarto que serviu de refúgio ao artista num período muito conturbado da sua vida (já lá iremos) dependia da boa vontade dos vigilantes de serviço. Mas, a partir de 2020, noticia o jornal The Telegraph, aceder a esta sala passará a depender menos da sorte, já que deverá abrir ao público regularmente, ainda que com grandes restrições, tudo porque as condições do espaço – pequeno, escuro, húmido, frágil – não se compadecem com o ritmo de visitas a que está sujeita a esmagadora maioria dos monumentos e museus de Florença.
“Estamos a trabalhar para abrir o quarto secreto de Miguel Ângelo”, disse ao diário britânico a atual diretora do Museu Bargello, Paola d’Agostino. “Já estamos a desenvolver um plano para que o espaço possa receber visitantes em segurança. Há ainda muito a fazer.”
Neste momento, esta câmara está aberta apenas a investigadores. O público não especializado só pode visitá-la virtualmente (a pequena cela foi fotografada ao pormenor e as imagens permitiram reconstituí-la, estando acessível num percurso interativo que ficou disponível em 2014, para coincidir com os 450 anos da morte do pintor e escultor).
A traição do mestre
Os 50 desenhos e esboços representam trabalhos que o artista tencionava acabar ou obras que terminara anos antes, disse Monica Bietti, conservadora do museu, à revista National Geographic, que em maio voltou a pôr sob o foco das atenções esta câmara redescoberta há 40 anos.
Nalguns casos, e mesmo sem recorrer ao zoom que a imagem digital potencia, é possível estabelecer correspondências entre os desenhos nas paredes e algumas dos frescos e esculturas bem conhecidos de Miguel Ângelo.
Um deles é semelhante, por exemplo, a uma das esculturas de mármore do túmulo de Juliano de Medici, que o artista projetou para a Sacristia Nova da mesma Basílica de S. Lourenço. Noutro um homem de costas faz lembrar um grupo do teto da Capela Sistina e noutro ainda há uma figura com o braço direito levantado, com a mão junto à cabeça, parecida com um Apolo/David em pedra que o mestre deixou por acabar.
No caso de um rosto masculino de barba, com uma expressão de dor ou tristeza, o artista desenha de memória aquilo que parece ser a figura central de um famoso grupo escultórico da antiguidade clássica que Miguel Ângelo muito admirava, Laocoonte e seus filhos (40-30 a.C.), redescoberto em Roma em 1506 e hoje parte da coleção dos Museus do Vaticano.
Dal Poggetto, que já escreveu muito sobre esta câmara escondida por baixo da capela funerária daquela que foi uma das mais importantes famílias do Renascimento europeu, está entre os que não têm dúvidas de que o autor dos desenhos é Miguel Ângelo. Este historiador de arte veterano, autor de Michelangelo. La “stanza secreta”. I disegni murali nella Sgrestia Nuova di San Lorenzo, acredita que foi nesta câmara subterrânea que o artista se refugiou mal os Medici, seus patronos, reconquistaram o poder em Florença, depois de porem fim a uma revolta que o autor do teto da Sistina decidira apoiar em 1529, chegando a participar nas obras de fortificação da cidade.
Esta rebelião começara dois anos antes, quando os seus habitantes, aproveitando o caos instalado na península itálica com o saque de Roma pelas tropas do imperador romano-germânico Carlos V, um Habsburgo, restabeleceram a República de Florença, obrigando os Medici e toda a sua corte, incluindo o papa Clemente VII, a refugiarem-se em Veneza.
Dúvidas e mais dúvidas
Em 1530, para escapar à ira do papa Clemente VII, também ele um Medici, Miguel Ângelo ter-se-á escondido durante dois meses neste pequeno quarto, defende Dal Poggetto, 81 anos, desenhando para combater o tédio. Temia pela sua própria vida, já que muitos dos revoltosos que haviam sonhado com uma república florentina livre tinham sido exemplarmente punidos.
O artista só reapareceu em novembro de 1530, depois de receber garantias de que o Papa estava disposto a não o castigar, contando que ele terminasse a capela da família.
Entre os que encaram esta teoria com ceticismo está William Wallace, um académico americano da Washington University of St. Louis. O historiador de arte põe em causa que Miguel Ângelo se tenha refugiado naquela câmara subterrânea (umas fontes dizem três meses, outras dois, outras ainda três semanas) e até que tenha desenhado nas suas paredes na década de 1530 ou em qualquer outra. Este especialista em arte e arquitetura italianas do século XIV ao XVIII, em particular na obra de Miguel Ângelo, defende que o mais provável é que o artista, célebre de mais para se esconder numa cave, tenha procurado proteger-se dos Medici na casa de um nobre rival e que os desenhos da parede tenham sido feitos quando trabalhava com os seus discípulos na Igreja, provavelmente nos anos 1520.
Seja como for, disse à revista National Geographic, estar naquele quarto é entusiasmante: “Sentimo-nos privilegiados. Sentimo-nos mais próximos do processo de trabalho de um mestre e dos seus alunos e assistentes.”
Alguns dos desenhos podem até ser de Miguel Ângelo, defendeu Wallace, mas outros são demasiado amadores para se atribuírem ao mestre. E “separar uns dos outros é praticamente impossível”.
A relação que se mantém com esta pequena câmara, no entanto, não é indissociável de tudo o que Miguel Ângelo criou à superfície, na Sacristia Nova. “Estamos perante alguém com capacidades infinitas. Ele viveu até aos 89 anos e foi ficando cada vez melhor e melhor.”
Desde a sua redescoberta, em 1975, até hoje, o pequeno quarto foi sujeito a várias campanhas de conservação que incluíram até a retirada dos restos mortais encontrados no subsolo, provavelmente de vítimas da peste, que continuavam a contaminar o ar e a afetar as paredes, escrevia o diário britânico The Guardian em 2003, dando conta de mais uma intervenção dos restauradores.
É porque Miguel Ângelo nunca terá dito exatamente onde se escondeu quando temia que o Papa o castigasse pela sua traição que Paolo dal Poggetto acredita que, durante 450 anos, esta sala permaneceu secreta. Segundo o Telegraph, o artista aludiu ao seu refúgio dizendo apenas: “Escondi-me numa pequena cela, sepultado como os Medici [no piso] de cima, para fugir de outro que estava bem vivo [Clemente VII]. Para esquecer os meus medos, enchi as paredes de desenhos.”
Miguel Ângelo deixou Florença em 1534, precisamente no ano em que Clemente VII morreu, sem chegar a terminar a capela que os mecenas lhe tinham encomendado.
por Lucinda Canelas, in Público | 12 de dezembro de 2017
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público