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Como é um espetáculo contado ao ouvido de quem não vê?
Há teatros e museus que se esforçam por tornar a arte acessível a todos, através de audiodescrição e língua gestual. Fomos ver o que acontece no Teatro Maria Matos e no Museu de Serralves.
“Olá, eu sou a Tânia, tenho um vestido preto, comprido, com uns folhos no decote e nos ombros, num tecido que parece seda.” A descrição é interrompida pela voz de Nelson. “Posso tocar?” “Claro!” A atriz pega na mão de Nelson e encaminha-a até aos folhos e daí para a gargantilha que tem ao pescoço e depois ao cabelo apanhado no cimo na nuca, enquanto explica também que na peça Amazónia as personagens têm os nomes dos atores que as interpretam. Welket, Isabel, Jani, Marco, Bruno. Todos estão ali, no palco no Teatro São Luiz, em Lisboa, pouco antes do espetáculo começar, para conversar com os dois espectadores com deficiência visual que vieram assistir a Amazónia naquele domingo à tarde. Descrevem a sua aparência. Deixam-se tocar. Um anel no dedo. Uns calções rococó em forma de balão. O cabelo encaracolado.
Depois de os atores saírem, para se prepararem para o espetáculo, a audiodescritora Sofia Afonso fala-lhes brevemente do cenário e pede-lhes que toquem nos pinheiros artificiais que povoam o palco. Terminada a visita de reconhecimento ao palco, Nelson e Tiago sentam-se nos seus lugares e colocam um pequeno auricular num dos ouvidos. Sofia vai para a sua cabine e fala-lhes ao ouvido. “O público entra na sala e ocupam os seus lugares. As luzes da sala apagam-se.” Começa o espetáculo. Eles não o veem mas vão ouvi-lo. E com a ajuda da audiodescrição ficarão a saber o que não podem ver.
Contar o que não pode ser visto
Nelson Portinha tem 42 anos e foi oficial de justiça até a perda de visão o ter forçado a entrar de baixa. Ao longo de 17 anos foi-se preparando para o momento em que iria deixar de ver mas e luta todos os dias por manter uma vida ativa e continuar a fazer as coisas de que gosta - como ir ao teatro ou visitar uma exposição. “É tudo muito difícil”, lamenta. Este é o primeiro dia em que sai de casa com a bengala, após uma intervenção cirúrgica. “Estive quase para não vir.”
Nelson é um dos participantes mais assíduos nas sessões teatrais com audiodescrição que no São Luiz começaram este ano, mas que também estão disponíveis, com regularidade, no Teatro Maria Matos e nos teatros nacionais Dona Maria II (em Lisboa) e São João (Porto). “Só é pena não haver mais”, diz ele. Ainda assim, a evolução tem sido enorme. Há três anos era raro haver sessões com audiodescrição, explica Anaísa Raquel, atriz que há cerca de sete anos começou a fazer este trabalho. “Era um serviço que não havia. “Criei uma equipa e fizemos formação ao início foi muito difícil explicar às pessoas isto não é solidariedade. É um serviço que é necessário haver.”
Para chegar a uma sessão de audiodescrição muito trabalho foi feito antes: começa-se por ver um vídeo de um ensaio e fazer um primeiro guião de audiodescrição; depois uma outra pessoa, que não sabe nada sobre o espetáculo, faz a correção; passa-se para uma fase crucial que é pedir o conselho a pessoas com diferentes graus de deficiência e diferentes gostos culturais; e, por fim, a audiodescritora vai assistir ao espetáculo para testar o guião em tempo real. “Temos que usar as pausas, para não interferir muito na experiência do espetáculo e nem sempre é fácil”, explica Anaísa Raquel. “Descrevemos tudo o que é visível e não é dito. Há quem faça de maneira diferente, mas nós defendemos que a audiodescrição deve ser o mais objetiva possível. Não descrevemos sentimentos, procuramos a palavra mais curta e mais verdadeira e deixamos que cada pessoa intérprete à sua maneira.” As dúvidas são muitas. Como explicar as cores a uma pessoa que nunca viu? Como explicar o que é uma teia ou como é um palco a alguém que nunca foi ao teatro? O feedback dos participantes tem sido essencial para melhorar a audiodescrição, diz.
Nessa mesma sessão de Amazónia, enquanto a audiodescritora Sofia Afonso se instala numa cabine junto aos camarotes, com visibilidade total sobre o palco e a sala, cá em baixo, estão as duas intérpretes de Língua Gestual Portuguesa (LGP), Sofia Rocha e Ana Silva. Ao contrário do que acontece com a audiodescrição, os intérpretes de LGP apostam na expressividade. Com gestos, procuram transmitir a entoação de cada frase dos atores e os sentimentos por trás daquelas palavras. Estão de costas para o palco, de frente para a plateia, iluminadas, para que sejam bem visíveis pelo grupo de surdos que veio assistir ao espetáculo.
André, Sara e Nedilson são alunos dos Instituto Jacob Rodrigues Pereira e são já espectadores habituais destas sessões com LGP que existem no São Luiz desde 2003. “Já chegámos a vir com grupos de dez pessoas”, conta a professora Anabela, que os acompanha. André, de 20 anos, é o mais “falador” dos três. Com gestos, conta como não perde uma sessão, aqui ou no D. Maria II, gosta de dançar, vai à discoteca e participa na marcha da Bela-Flor (de Campolide). E até gostaria de fazer teatro no futuro.
Perceber o que não se ouve
Em silêncio. Em absoluto silêncio. É assim que decorre a visita guiada em LGP à exposição de Jorge Pinheiro, patente no Museu de Serralves, no Porto. E, no entanto, tanto que ali se conversa.
Ao longo de quase duas horas, os cinco participantes nesta visita aprendem o que significa a palavra “fibonacci”, ficam a conhecer a vida e a carreira do artista, discutem a influência do 25 de Abril e da situação política do país na sua obra e muito mais. Tudo isto em silêncio, com a ajuda da intérprete de LGP Susana Tavares e da mediadora Inês Tomás.
Inês tem 32 anos é arquiteta e tem surdez profunda. E tem uma energia incrível. Nunca deixou que a sua incapacidade a impedisse de fazer o que queria. “Leio muito, é a única maneira”, explica. “Faço muita leitura labial mas, para isso é preciso saber e depois estar cara a cara com a pessoa. Em sala de aula é muito complicado, é preciso ter intérprete. Por isso é preciso pesquisar muito. Mas sinto que ainda há muitas barreiras.”
Quando, este ano, soube que a Associação Cultural Laredo estava à procura de mediadores surdos, candidatou-se imediatamente. “Eu acho que os surdos gostam de arte mas até agora encontram muitas barreiras. Até podem ir ver uma exposição mas depois não percebem, porque a arte tem uma linguagem específica, não é fácil”, conta Inês, através da tradutora de LGP. “É preciso alguém que faça esse trabalho prévio, que haja uma sintonia entre os conceitos da história da arte e a língua gestual. O mediador faz essa ponte entre a arte e a comunidade surda.”
Joana Macedo, da Associação Cultural Laredo, fundada em 2014 e que no Porto, entre outras coisas, trabalha com a comunidade surda com a novidade de preferirem usar mediadores em vez de tradutores. “Temos um grupo de jovens surdos que fazem as visitas em pé de igualdade com os outros participantes. A ideia é que as visitas guiadas não sejam uma tradução mas que sejam pensadas diretamente em língua gestual portuguesa, que é uma língua que muitas vezes não tem correspondência direta com conceitos e ideias, sobretudo se falamos de arte e de história de arte.” A primeira visita foi em 2015, no Serralves em Festa. Agora, fazem pelo menos uma visita por mês em Serralves e outras coisas, como as visitas guiadas no Teatro São João.
Pedro Prata, 42 anos, é técnico de informática e surdo. É também um dos participantes mais assíduos nestas visitas. Gostou da exposição de Jorge Pinheiro mas, até agora, a sua preferida foi “a dos balões”, diz, referindo-se à exposição de Philippe Parreno. “Dessa gostei muito, muito.”
Antes de descobrir as visitas em LGP em Serralves tem uma vaga memória de ter visitado a Fundação uma vez: “Há muito tempo, devia ter uns 16 anos, com a escola, mas acho que nem sequer havia o museu”. A mediação faz toda a diferença: “Se eu viesse aqui sozinho até podia ver as obras mas não ficava a perceber nada. Assim, faz tudo muito mais sentido na minha cabeça. Só é pena não haver mais, visitas, espetáculos, tudo.”
A lista da programação cultural acessível é disponibilizada, trimestralmente, no site da Acesso Cultura, uma associação sem fins lucrativos criada em 2013 para promover a melhoria das condições de acesso - físico, social e intelectual - dos espaços culturais, procurando ultrapassar todos obstáculos. Promovendo mudanças, pequenas e grandes. Como ter rampas de acesso ou portas que facilitem a circulação de pessoas com deficiências motoras. Ter “sessões descontraídas” de espetáculos ou filmes, com condições de luz e som especiais. Ter audioguias em museus ou visitas com audiodescrição em exposições (como há no Padrão dos Descobrimentos). Promover a oferta cultural em regiões onde esta é escassa. E muito mais.
Agora que as instituições parecem estar mais atentas para este problema, falta a parte mais complicada: divulgar estes serviços entre as comunidades que deles precisam. “É importante criar uma regularidade, uma programação fixa, que as pessoas saibam que isto existe e que podem vir”, diz Nuno Santos, o responsável pela área da acessibilidade do Teatro São Luiz. “Os número não são importantes para nós. Se vier uma pessoa, fazemos a audiodescrição ou a LGP para uma pessoa. Se não vier nenhuma, não fazemos, mas estamos cá à hora marcada. Como acontece numa sessão normal. Os atores também nunca sabem se vão ter espectadores ou não.” Ou como diz Anaísa Raquel: “É preciso tornar estes serviços tão banais que, um dia, nem precisaremos fazer notícias sobre isto.”
por Maria João Caetano in Diário de Notícias | 4 de dezembro de 2017
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias